Friday, May 10, 2013

Portugal: AS PENSÕES E A ARTE DA FUGA




Daniel Oliveira – Expresso, opinião

Depois de violar a Constituição duas vezes, o governo tenta de novo. Agora é a vez de, através da convergência da segurança social com a Caixa Geral de Aposentações, reduzir as pensões. Não as futuras, mas as que já estão a ser recebidas. Uma aplicação retroativa da lei que, parece-me, viola a Constituição. Porque uma reforma não é um salário. É resultado dos descontos que se fizeram. É uma devolução. E porque essa devolução se baseia num contrato que não pode ser mudado a meio, de forma unilateral. A quem enche a boca com "honrar os compromissos" isto nem sequer deveria ter de ser explicado.

Na realidade, esta receita, para ser, como Gaspar quer, imediata, só poderia ser conseguida através de uma taxa ou de um imposto. Mas Paulo Portas, e agora Passos Coelho, gosta de dizer que não aumenta impostos. Que prefere cortar na despesa. E para continuar este jogo semântico, que é sentido, de uma ou de outra forma, da mesmíssima maneira nos bolsos dos trabalhadores e reformados, inventam estratagemas que violam a lei e os princípios da credibilidade do Estado.

Dirão: o problema é a Constituição e os "direitos adquiridos". Eles são incompatíveis com o que tem de ser feito. Nestas matérias, a Constituição limita-se a pôr em papel as regras normais de um Estado de Direito. O Estado não pode dispor, a seu bel-prazer, de dinheiro que não lhe pertence. Não pode reduzir 10% reformas que já estão a ser pagas e que resultam de descontos feitos numa vida inteira. Pode mudar o futuro. Não pode mudar o passado. A não retroatividade das leis é uma regra geral de qualquer ordenamento jurídico normal.

Conclusão: o que supostamente tem de ser feito é que é incompatível com qualquer ideia de Estado de Direito e de democracia. Já muitos o disseram: não é possível fazer, em crise e em poucos anos, os cortes na despesa, o aumento na receita e a contração do PIB que a austeridade receitada pela troika nos quer exigir. Porque a democracia é, por natureza, avessa a engenharias sociais pensadas em gabinetes de burocratas.

Esta impossibilidade democrática não resulta exclusivamente da lei. Resulta da própria vontade dos povos. Um povo esmifrado até ao tutano tende a reagir. Se o saque é feito pelos poderes eleitos tende a correr com quem o governa. E é por isso que, por essa Europa fora, nenhum governo de países em crise consegue manter o mínimo de confiança dos cidadãos mais do que dois ou três meses.

A questão é sempre a mesma: quanto tempo aguenta o regime democrático viver sob esta pressão insuportável? Pouco. É nesse pouco tempo que ou a Europa muda de caminho por pressão dos cidadãos ou teremos nós, e todos os que estão como nós, de nos proteger desta Europa. Ou a democracia salva a Europa ou a democracia se salva da Europa.

Tudo o resto a que estamos a assistir, da simulação de idas aos mercados às rábulas de Paulo Portas, das inconstitucionalidades aos buracos que elas deixam nos orçamentos, das medidas de austeridade aos seus resultados trágicos e previsíveis, são episódios de uma novela com um epílogo mais do que certo. Pondo-nos nas mãos de outros, que, como é evidente, tratam de si, estamos apenas a fugir da realidade. Por cada dia que passa sem fazermos o corte que tem de ser feito com o euro (que sustentei há mais de um mês na edição impressa do "Expresso"), mais difícil será reconstruirmos a nossa economia e salvarmos o que resta da nossa democracia.

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