Nuno Saraiva – Diário de Notícias, opinião
A decisão do Tribunal Constitucional (TC), travando os despedimentos a eito na administração pública, trouxe mais uma vez ao debate os arautos do costume armados dos clichés habituais. Que o Estado é pesado, demasiado pesado, e que o País não tem dinheiro para o suportar; que o TC é excessivamente conservador e restritivo na interpretação que faz da Constituição da República; que os juízes do Palácio Ratton são um obstáculo à modernização e, acrescento eu aquilo que evidentemente está no subtexto destas posições, uma força de bloqueio à governação; que esta decisão abriu mais um buraco de quase 900 milhões nas contas do Governo.
O primeiro-ministro, seguindo a habitual linha de confrontação, ameaçou veladamente com um novo agravamento fiscal e insinuou a responsabilidade do Tribunal Constitucional pela eventual necessidade de Portugal ter de solicitar um segundo resgate.
Sejamos sérios. O que os juízes vieram dizer não foi que é proibido despedir funcionários públicos. O que está no acórdão é que a dispensa de trabalhadores do Estado não pode ser a inevitabilidade de um programa de requalificação de funcionários, em que a única saída e o único objetivo é o despedimento.
Ao fim de pouco mais de dois anos, Pedro Passos Coelho enfrentou esta semana o quinto chumbo a normas constantes de diplomas seus. Três de natureza orçamental, um relacionado com a legislação das comunidades intermunicipais e, finalmente, a requalificação dos funcionários públicos. Aliás, se recuarmos até à festa do Pontal, verificamos que esta decisão não foi sequer inesperada, tanto mais que o primeiro-ministro alertou na altura para os "riscos constitucionais" que o Governo tinha pela frente. E o que isto demonstra é uma atitude deliberada e reiterada de legislar e governar contra a Constituição. Sim, é ao Governo e à Assembleia da República que está atribuída a competência legislativa.
Compete ao Tribunal Constitucional, num Estado de direito, verificar se as normas e as leis aprovadas pelo poder político estão conforme a Constituição da República. E foi isso, e nada mais, que os juízes fizeram, mais uma vez, apesar das pressões públicas do primeiro-ministro. Portanto, se há hoje um buraco nas contas públicas e se houver necessidade de um segundo programa de ajustamento, isso é da exclusiva responsabilidade de quem governa, com maior ou menor incompetência, e não de quem fiscaliza e garante a legalidade constitucional da legislação.
Em 2010, então na oposição, o PSD apresentou um projeto de revisão constitucional que, entre outras coisas, sugeria a substituição do "despedimento com justa causa" por "despedimento por razões atendíveis". As ondas de choque à época foram tantas e os custos eleitorais calculados pelas sondagens eram tais que a proposta ficou no fundo de uma gaveta. Sabemos hoje que a gaveta era, afinal, um biombo. De forma mais ou menos encapotada, a atual maioria tem tentado pôr em letra de lei a revolução constitucional desencadeada há três anos, com o respaldo público dessa entidade democrática que é a troika e de alguns notáveis partidários.
Há não muito tempo, Marques Mendes dizia na televisão, em tom de ameaça, que se o Tribunal Constitucional se opuser à redução de salários e de pessoal na administração pública, estará a impedir o Governo de reduzir a carga fiscal. E foi mais longe quando advogou que "ou se cumpre a Constituição, ou se baixam os impostos". Estranha forma esta de interpretar a democracia e o Estado de direito em que, apesar das regras, se defende de forma despudorada o atropelo das mais elementares normas constitucionais em nome de um dogma cujos resultados estão bem à vista de todos nós.
É mais do que óbvio que o atual primeiro-ministro detesta a Constituição. É mais do que evidente que o atual Governo convive com grande dificuldade com os órgãos de fiscalização da legalidade de funcionamento do Estado. Regresso, por isso, a uma máxima que me parece do mais elementar respeito pelo Estado de direito democrático: podemos concordar ou discordar da Constituição. Podemos até considerar que ela está datada e desadequada do tempo histórico que vivemos, o que não podemos é passar a vida a fingir que a Constituição não existe.
Quem não se revê no texto fundamental tem o dever de apresentar propostas alternativas e garantir a sua aprovação. É uma chatice, dirão alguns, mas é assim que funciona a democracia.
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