Friday, June 28, 2013

DAMASCO: A ENCRUZILHADA DOS PROFETAS (I)



Rui Peralta, Luanda

I - Os capacetes azuis austríacos decidiram retirar-se dos Montes Golã, após o exército sírio ter tomado a cidade de Quneitra, no início de Junho, após intensos combates contra os bandos que ocupavam a cidade. Os austríacos alegam insegurança, conforme anunciaram o chanceler Werner Faymann e o ministro do Exterior, Michael Spindelegger. Um comunicado do Ministério da Defesa austríaco refere que a situação deteriorou-se nas últimas semanas e que os soldados austríacos já não têm condições para permanecer na região, uma vez que existem dificuldades logísticas e que a liberdade de movimentos é inexistente.

Josephine Guerrero porta-voz das forças da ONU estacionadas nos Montes Golã, UNDOF, confirmou os intensos combates que levaram á tomada de cidade por pate das forças armadas sírias e que dois capacetes azuis sofreram ferimentos ligeiros. O secretário-geral da ONU lamentou a decisão da Áustria e expressou a sua inquietação pelas consequências desta retirada e o mesmo fizeram os israelitas, cm palavras similares e concordância de discursos. Os israelitas apresentaram, também uma queixa na ONU, sobre a “instabilidade” vivida nos Montes Golã, o que não deixa de ser curioso por vários motivos, a saber:

1) Israel ocupa parte dos Montes Golã, desde á décadas, contra todas as decisões e moções da comunidade internacional, referentes á desocupação daquela parcela do território sírio;

2) A instabilidade a que os israelitas referem-se foi causada pelo reassumir do controlo por parte do governo sírio, de uma cidade que estava ocupada pelos bandos de mercenários ao serviço dos estados do golfo e da NATO. O reassumir do controlo por parte do governo sírio parece ser um sinal de instabilidade para os israelitas, que consideravam estabilidade a ocupação da cidade por parte dos mercenários ao serviço dos estados do golfo e da NATO.

3) As mesmas parecem ser as motivações dos austríacos. A “liberdade de movimentos” aparentemente só existia, para os capacetes azuis austríacos, enquanto os mercenários controlavam a cidade. Quando o governo sírio, membro da comunidade internacional, Estado integrante das Nações Unidas e a autoridade legítima na área, que é território sírio, reassumiu o controlo da cidade, os austríacos definharam e consideraram-se em perigo. No mínimo estranho, pois a UNDOF é devida á ocupação israelita daquela parcela do território sírio. Ou será que os austríacos pensavam que já eram uma força expedicionária da NATO, cuja presença servia de suporte aos israelitas e aos mercenários que agridem o território sírio?

II - Outra cidade sobre a qual as autoridades sírias reassumiram o controlo foi Quseir, após fortes combates e com o apoio das milícias do Hezbollah. O reassumir do controlo da cidade por parte do governo, parece ter provocado uma onda de indignação na NATO e nos estados do gofo, para além de uma serie de olhos lacrimejados nos órgãos de propaganda tóxica internacional (as cadeias noticiosas e os escribas dos serviços de inteligência ocidentais que se fazem passar por jornalistas). 
                  
A população de Quseir, cerca de quarenta mil habitantes, viveu no terror e na humilhação, durante a ocupação da cidade por parte dos bandos fascistoides islâmicos que impuseram a sharia, as torturas e os interrogatórios de fé sobre os “infiéis que conspurcavam a cidade”. Sofreu o cerco e os bombardeamentos efectuados pelo exército sírio e pelas milícias do Hezbollah. A cidade foi prácticamente destruída, devido aos intensos combates.

Quseir é uma importante vitória para o governo sírio. Não apenas pelo seu posicionamento geoestratégico, ou pela sua importância económica, mas pelo seu papel simbólico para o Exercito Livre da Síria (ELS) e para o Conselho Nacional Sírio (CNS), da oposição. Simbólico porque revelador da sua fraqueza político-militar, pois que neste momento pouco mais controlam. Simbólico também, porque desde que o ELS tomou a cidade, foi visível a luta entre os diversos bandos que o compõem. A sua cúpula militar nunca chegou a entrar em Quseir, devido às lutas internas e o CNS apenas enviava congratulações e mensagens de resistência a partir do Qatar, pois os seus membros nunca foram bem-vindos entre os bandos que assumiram o controlo da cidade, depois das lutas internas.

O tragicómico CNS e a sua panela de pressão de bandos armados, o ELS, fizeram desta batalha um “momento épico”, pelo que se podia ler nos órgãos informativos, como estivessem perante a tomada de Damasco. Mas as suas forças, bem armadas, bem equipadas e apoiadas pelo Ocidente e pelos seus aliados árabes, nada conseguiram frente á firmeza as forças armadas sírias e á grande operacionalidade das milícias do Hezbollah, que desde a primeira invasão israelita do Líbano, tem naquela cidade um referencial histórico e solidário, uma vez que foi em Quseir, que ficaram albergados muitos dos seus militantes e apoiantes.     

III - Durante este mês a ONU acusou ambos os lados do conflito sírio de “novos níveis de brutalidade”, o que engloba tortura, rapto, homicídio, desalojamentos forçados e outros actos desumanos, essencialmente praticados contra civis. A questão das armas químicas está em aberto. Os investigadores da ONU dizem ter recebido informações que alegam o uso de armas químicas por parte das forças governamentais, mas não confirmam.

A França, sempre em busca de uma crise internacional para espalhar os seus enfants de la patrie, fala em gás sarin e que os seus laboratórios já comprovaram o uso deste gás na Síria. O seu ministro do Exterior, o enfadonho Laurent Fabius falou imenso sobre o assunto, disse que as “linhas foram, sem dúvida, ultrapassadas” e “que todas as opções estão sobre a mesa” (já todos disseram esta frase da mesa, mas Laurent Fabius não é propriamente conhecido pela sua originalidade) só que os franceses não dão detalhes nem comprovam efectivamente estas ocorrências: quando, onde e se foi o governo ou a oposição a fazer uso do gás sarin.

Em resposta á França, a Casa Branca, através do seu porta-voz, Jay Carney, anunciou que “é necessário mais informação” sobre estas alegações de uso de gás. Os cuidados norte-americanos são tanto maiores, quanto mais se observam as tensões a ultrapassar a fronteira síria e a afectarem toda a região, principalmente o Iraque, onde mais de 500 pessoas morreram, em Maio, o que faz subir o número de vítimas, desde Abril, para 700, altura em que começaram uma nova série de atentados e choques violentos entre xiitas e sunitas.

Os USA também observam a subida de tensão no Norte do Líbano e seguem com apreensão os acontecimentos na Turquia, não apenas o desenvolvimento das manifestações, mas também a evolução da situação curda (muito sensível aos acontecimentos na Síria) no país. Entretanto a administração Obama anunciou que misseis Patriot e aviões de combate F-16 foram colocados na Jordânia, para um exercício militar, mas que aí permanecerão até novas decisões, dependentes da evolução do conflito sírio.

IV - Os últimos avanços das forças governamentais sírias, que consolidaram as suas posições no terreno, vieram desmentir a imagem pré-fabricada pela propaganda ocidental que apresentava a queda iminente de Damasco e a fuga de Bashir. Não só Damasco continua firme, como Bashir não parece minimamente preocupado com a sua permanência, nem o “tenebroso regime sírio” “a tirania monstruosa de Bashir” parece sofrer grandes beliscaduras. Calmamente as forças armadas sírias avançam no território, repondo a administração nas áreas que o ELS ocupou e que agora abandona apressadamente.

O avanço governamental é agora para sul, através da fronteira com a Jordânia, o que levou a NATO a inventar exercícios militares na Jordânia e os USA a enviarem os misseis e aviões, acima referidos. É evidente que o exagero com que a pintura da paisagem síria foi efectuada para a opinião publica internacional, caiu por terra e agora está um quadro pouco nítido e confuso, que leva a opinião publica internacional a interrogar-se sobre o que se está realmente a passar.

O estado caótico em que se encontra a chamada “oposição síria”, tanto as cúpulas politicas, como as militares, a falta de consenso, o constante ziguezaguear do CNS, o papel cada vez mais preponderante da al-Qaeda, que através da Frente al-Nusra, tomou o controlo de muitas das operações do ELS e o facto de a direcção do CNS passar o seu tempo nos fóruns internacionais, enquanto no terreno ninguém a conhece, reconhece ou acata as suas orientações, são factores que contribuem para o esboroar da tinta que foi utilizada para pintar o “cenário sírio”. Tinta de má qualidade, argumentos mal escritos e guiões incongruentes estão a fazer recuar a produção que o Ocidente e os estados do golfo pretendiam realizar na Síria.

Mas não são apenas os argumentistas de terceira, os guiões de quarta e os cenários mal desenhados e concebidos. O Secretário de Estado John Kerry, este mês decidiu fazer uma acção de “agitprop” da de pior qualidade, para consumo das grandes massas norte-americanas que nem sabem onde localizar a Síria num mapa-globo. Eis então um pequeno trecho da fraseologia do “popularucho” Kerry:

“What is happening in Syria is happening because one man, who has been in power with his family for, you know, years now, more than 40 years, will not consent to an appropriate process by which the people of Syria can protect minorities, be inclusive, and have the people of Syria decide their future.”. Retrato tirado da família Assad, eis que o aprendiz de “agitador” passa de imediato ao Irão (o objectivo final) e á nova dor de cabeça da NATO e dos seus aliados árabes, na ofensiva contra a Síria: o Hezbollah. Fala assim, o “activista” Kerry: He has decided to protect himself and his regime’s interests by reaching out across state lines and actually soliciting the help of Iran on the ground with fighters, as well as Hezbollah, a terrorist organization. A designated terrorist organization has now crossed over from Lebanon into Syria and is actively engaged in the fighting.”

Estas palavras não foram proferidas num encontro intimo de “amigos da Síria”, ou depois de um jantar em que os efeitos da bebida se fazem sentir. Estas palavras foram proferidas pelo sóbrio John Kerry na sua função de Secretário de Estado. Decepcionante e irrealista, ou melhor, mentiroso. E também de pouca dignidade para o alto cargo que ocupa. Os USA merecem melhor, quanto mais não seja pela sua História e pelo seu povo… 

V - Os serviços secretos tunisinos referem que actualmente combatem na Síria, ao lado do ELS, cerca de dois mil tunisinos. O ELS está recheado de combatentes provenientes dos países islâmicos, recrutados tanto pela Al-Qaeda (centrados, agora na al-Nusra) como pelos serviços secretos dos estados do golfo, da Turquia, dos serviços de inteligência europeus e pelas células da CIA na região. A agressão á Síria é um facto reconhecido pelos agressores. Como é uma agressão, logo é um conflito internacionalizado. Por isso hoje, no terreno, para alem dos agressores estrangeiros, estão os aliados da Síria, como o Hezbollah, cujos serviços de informação fizeram uma leitura correcta da situação na região e decidiram aliar-se ao governo sírio no momento em que é pressentida uma movimentação interna no Irão no sentido de uma eventual “normalização” nas relações entre este país e os USA (as palavras de Kerry, acima expostas, que referem o Irão foram ditas antes das eleições iranianas), consequência das lutas internas na elite politica iraniana, entre os “moderados” e os “radicais”, tendo os primeiros ganho alguma influência, conforme ficou demonstrado nas eleições.

A movimentação do Hezbollah é pois realizada no exacto momento em que os “radicais” iranianos tentam-se entrincheirar nos serviços secretos iranianos e resistir ao previsível avanço dos “moderados” e a uma eventual aproximação entre os USA e o Irão. Embora a “normalização iraniana” não vá ter uma grande influencia nos objectivos dos USA e da NATO (a alteração dos mapas e o retalhar de fronteiras, para melhor controlo dos recursos globais) é importante no sentido em que implica uma neutralização do Irão, o que facilitará as movimentações de desintegração da Síria, tornando a questão muito mais facilitada (porque já com os testas de ferro a funcionar em pleno no Irão) naquela que será a próxima acção de agressão: o próprio Irão.

Ao internacionalizar a sua posição, o Hezbollah prepara-se para uma situação de guerra prolongada em diversas frentes: na Síria, no Líbano (o seu país de origem) e eventualmente no Irão, para alem de uma manifesta ofensiva na Turquia, realizada através dos seus aliados curdos e das suas células locais, criadas na Turquia com a colaboração dos serviços de inteligência sírios e iranianos. E esta leitura dos serviços de inteligência do Hezbollah (na actualidade, os mais eficientes na região e os únicos que conseguiram neutralizar a MOSSAD) é a mais correcta.

A paz não será visível nos próximos tempos, em toda a Ásia ocidental. Não só pelas dinâmicas externas, mas também pelas dinâmicas internas, que em alguns países são centrifugas e estão em plena ebulição. E estes factores levam a que os USA assumem uma posição expectante e joguem, também eles em várias frentes. Os norte-americanos (ao contrário dos seus aliados turcos, franceses e do estado do golfo) têm muitas peças no tabuleiro, para além de um tabuleiro muito maior. A aparente diferença entre os discursos de Obama e de John Kerry, são apenas isso mesmo: aparências.

Os USA sabem que a pressa turca, francesa e dos estados do golfo é devida a esta dinâmica, que aos poucos foge ao controlo do Ocidente. A NATO (franceses e turcos incluídos) aposta numa guerra a curto prazo e de curto termo, por razões internas e inerentes á situação de crise financeira e económica vivida na Europa. Os franceses necessitam que algo ocorra e tentam fabricar as histórias relacionadas com o uso de armas químicas. A situação politica interna de Hollande é cada vez mais precária e a elite politica francesa procura no plano externo os sucessos que não pode obter no plano interno, para satisfazer a elite económica.

A Turquia vive um momento de contestação ao seu governo. A dinâmica interna entrou num período de grande agitação e as divergências no seio da sociedade turca agravam-se rapidamente e em todos os sentidos. A luta entre os sectores urbanos, laicos e os rurais, religiosos, agudiza-se, assim como as lutas sociais e as reivindicações dos trabalhadores, perante uma situação económica cada vez mais difícil. Os curdos, por sua vez, forçam o governo turco a um acordo e jogam com o abandono da luta armada, prometendo-a mas não terminando com as operações no terreno, ao mesmo tempo que apostam na movimentação de massas e no alargamento da luta politica. Dai a impaciência dos governantes turcos em iniciar uma guerra declarada com a Síria, integrados na NATO e com a participação dos USA.

Quanto aos estados do golfo, a situação interna também não corre bem e são alvo de uma cada vez maior contestação interna. Por outro lado, os seus “cavalos de corrida” na Síria, a ala maioritária do CNS, já demonstraram a todos a sua incompetência e falta de cultura politica. Os estado do golfo sabem que quanto mais tempo passar mais terão de negociar com os radicais sunitas, para arranjar uma solução, que os afastará do seu objectivo imediato: um estado subordinado aos emires, ou uma serie de pequenos emirados na Síria. Daí que financiem tudo e todos, para acelerar o processo de desintegração da Síria.

Perante este quadro os USA agem com as devidas precauções. Eles têm mais peças no tabuleiro que qualquer um dos seus aliados, mas têm também que olhar para a posição russa, coordenar as suas actividades com os britânicos e controlar os ímpetos súbitos dos seus aliados israelitas (seguidos de longos períodos de estática esfíngica), para alem de conter a impaciência dos restantes. Observam, fazendo contas á vida, o alargamento da “mancha síria”, principalmente ao Iraque e ao Líbano e coçando a cabeça (em conjunto com os seus parceiros da U.E, na NATO) perante o agravamento interno turco.  
       
(continua)

Fontes
New York Times, May, 23, 2013

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