Friday, April 26, 2013

Moçambique: VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA ESTATAL




Verdade (mz), em Tema de Fundo

Os agentes da Polícia da República de Moçambique continuam a fazer vítimas. Chande e Zandamela são dois exemplos da negligência dos agentes da lei e ordem. O primeiro encontrou a morte num local inesperado. Quito, outro dos infortunados, sobreviveu graças à tenacidade da mãe. Em suma, representam uma gota no oceano dos enteados do Estado. com o destino, mas não sabia que o mesmo era a morte.

Um polícia à paisana disparou para a multidão e a bala foi-se alojar no seu corpo, no interior de uma mercearia, e pôs um ponto final na sua vida. Era tarde de domingo. Uma multidão assistia a uma sessão de rali protagonizada por alguns jovens na via pública quando se ouviu um estrondo. Depois seguiram-se outros. Os presentes, em pânico, procuraram abrigo onde o desnorte os levou. De repente, as balas cessaram e a rua voltou a ter vida. Aliás, nem tudo era vida. Um corpo ficou tombado a esvair-se em sangue.

Um cadáver que era o testemunho de que pelo menos um tiro não fora para o alto como a Polícia dizia. Este acontecimento, que se parece com o argumento de um filme de ficção de Hollywood, sucedeu no passado dia 25 de Abril, numa das principais vias do bairro do Choupal, arredores da cidade de Maputo, deixou os moradores perplexos e os familiares da vítima indignados e, acima de tudo, inconformados.

Eram 15 horas quando Irachande Ismael, ou simplesmente Chande – como era tratado pelos familiares e amigos –, de 23 anos, estudante da 10ª classe, decidiu ir a uma mercearia, onde também se vendem bebidas alcoólicas, que se localiza a três passos da sua casa, com o propósito de espairecer. A rua estava repleta de pessoas que pareciam estar satisfeitas com o habitual espectáculo de malabarismo com viaturas ligeiras proporcionado por um grupo de jovens do bairro naquele dia de semana. Na mercearia, foi puxando conversa com algumas pessoas conhecidas que por ali estavam e pediu uma cerveja.

Nunca havia ficado naquele local por mais de cinco minutos, “quando entrava era apenas para cumprimentar os seus amigos e ia-se embora”, explica Acácio Cumbe que há um ano se encontra a gerir aquele estabelecimento comercial. Mas naquele dia “ficou mais tempo do que o costume” para um encontro com a morte.

Na verdade, Chande pediu uma cerveja porque deparou com uma amiga com a qual há muito não se avistava. O rali acontecia defronte da mercearia e ao lado de um posto de venda de energia para os usuários do sistema de Credelec, guarnecido por um polícia que estava vestido à paisana por causa de um assalto que aquele estabelecimento sofreu há alguns dias, segundo nos deram a conhecer os residentes do bairro.

Enquanto o público se excitava com as cenas que testemunhavam in loco, o polícia de turno “irritava-se com a situação”, o que o terá levado a retirar o revólver que trazia escondido e “disparou vários tiros para o ar e contra os jovens que faziam rali”, conta Omar Rufino, amigo e primo de Irachande. Em seguida, instalou-se um tumulto, uma vez que as pessoas procuravam um lugar seguro para fugir das balas.

Os que estavam na mercearia lançaram-se ao chão. Volvidos poucos minutos, os gemidos de dor deram a entender que alguém havia sido alvejado naquele recinto: era o Chande. As pessoas aproximaram-se do moribundo e verificaram que fora ferido por uma bala que lhe atravessou o lado esquerdo do corpo, na zona das costelas, de onde jorrava sangue. De seguida, tratou-se de chamar os parentes da vítima que acabaram por arranjar transporte para levar o seu ente querido aos cuidados médicos no Hospital Geral José Macamo.

Antes disso, a população revoltou-se contra a atitude do atirador, que foi levado para a esquadra mais próxima, visto que aquele ponderava a hipótese de perpetrar uma fuga. Devido à escassez de recursos, Irachande Ismael fora evacuado do leito hospitalar onde se encontrava internado, para o Hospital Central de Maputo, onde viera a perder a vida na madrugada de segunda-feira quando se lhe extraía a bala.

Uma família inconformada

O dia 25 de Abril ficará na memória colectiva dos amigos e parentes de Chande porque “a sua morte causou um impacto de enormes proporções”, disse Momed Ibrahimo, tio do malogrado, para depois acrescentar que a família “não se conforma com a situação e não acredita na história de bala perdida. Como as coisas aconteceram, isso leva-nos a duvidar que realmente se tratou de uma bala perdida”. Os parentes também estão indignados com a Polícia devido à sua atitude de indiferença desde o momento em que lhe foi dado a conhecer o caso. “Que a justiça seja feita”, é o que exigem.

“Sabemos que não nos vão trazer o Chande de volta mas se o polícia não pagar pelo que fez, não nos iremos sentir sossegados”, adianta um parente. Além da família da vítima, amigos e pessoas mais próximas também clamam por justiça, tendo afirmado em uníssono que “a justiça deve ser feita para dignificar o país” e lamentaram o facto de a polícia reagir logo após assistir a uma reportagem televisiva onde apareciam os membros da família a repudiarem o comportamento da mesma.

Aliás, foram enviados dois polícias alheios ao caso para a casa da família enlutada, levando uma cesta básica alimentar. “Extrovertido, simpático e uma pessoa com uma imagem marcante”. São estas as palavras usadas por parentes, amigos e outras pessoas mais próximas de Irachande Ismael para descrevê-lo.

Onde está o polícia?

Segundo os moradores, o polícia, cujo nome não nos foi facultado, encontrava-se sob efeito de álcool na ocasião e tentou fugir quando se apercebeu de que havia uma pessoa ferida. Porém, foi imobilizado pela população e de seguida levado à esquadra, onde este afirmou que disparou para assustar as crianças que brincavam próximo de onde acontecia o espectáculo e os próprios protagonistas. Volvida uma semana em que esteve detido, o polícia é dado como desaparecido, o que forçou a família da vítima a levar o caso à Liga dos Direitos Humanos.

No entanto, a Polícia afirma que o indivíduo fora transferido da esquadra onde estava afecto para a de Choupal “A” e desta para o comando da cidade porque ainda não estava em condições de responder a qualquer tipo de questões.

Um tema que, sem sombra de dúvidas, está presente na sociedade moçambicana: a responsabilidade do poder público nos casos de “bala perdida”. Diante de uma notícia como esta, muitos afirmam que o Estado responde, civilmente, perante a vítima. Mas, será que essa premissa se aplica sempre?

Outra vítima

A história de Chande não é um caso isolado. Aliás, assemelha- se à de muitos outros cidadãos neste país. A esperança de justiça, que se seguiu à amputação da perna de Quito, foi comprometida quando o Estado se furtou à sua responsabilidade pelo sucedido. Hoje, ainda mais do que ontem...

Numa residência no bairro do Maxaquene, as balas de 1 e 2 de Setembro deixaram uma vítima. Não lhe tiraram a vida, mas levaram-lhe os sonhos. Primeiro, Quito foi atingido na perna quando regressava da escola por um projéctil disparado pela Polícia. Depois, por conta de uma “falha de procedimento” médico, amputaram-lhe duas vezes a perna direita. Actualmente, ele e a família batalham na vã esperança de que o Estado intervenha para reparar os danos. Agora, com menos fé do que no período pós-manifestações.

Antes da tragédia de 1 de Setembro, a progenitora ia frequentemente à vizinha África do Sul com o fito de comprar produtos, os quais revendia em Moçambique. Uma actividade que tinha os seus contratempos, mas que garantia o sustento do agregado familiar e dava para guardar algum dinheiro para pequenas eventualidades. O negócio, diga-se, corria de feição, até se dar a tragédia.

Assim, Maria do Carmo trocou o país vizinho, símbolo máximo da prosperidade familiar, pelo papel de enfermeira do filho que o Estado abandonou. Impossibilitada de se deslocar à África do Sul, tem de se desenvencilhar no bairro do Maxaquene para aumentar o minúsculo orçamento familiar. Passou a vender pão num local mais próximo de casa para não abandonar o filho.

“Este país inferniza a vida dos seus cidadãos”, diz. “Foi uma desgraça tremenda. O miúdo já fazia os seus próprios biscates, mas logo virou um dependente total”, afirma um vizinho.

Não fossem as marcas profundas, o primeiro dia de Setembro de 2010 seria uma data para esquecer. Com a notícia do incidente, o mundo dos Manganhelas quase desabou. Do Carmo, qual mãe sem útero, andou desnorteada pelos hospitais de Mavalane e Xipamanine e só ficou a saber do filho às 12 horas na Ortopedia 2 do HCM, onde foi atendida às 16h30.

“Andei assustada. Havia muitos cadáveres nos hospitais”, lembra. No entanto, saber que Quito não tinha morrido, diz, foi o mesmo que sentir que lhe devolviam o útero. De acordo com as palavras de Quito, no carro onde se faziam transportar, vários feridos foram torturados pela polícia. Alguns agentes pisavam as suas feridas, alegando que se tratava de marginais.

Logo que a mãe avistou o médico no HCM, tratou de ouvir o diagnóstico sobre o filho. O especialista garantiu que o problema não era complicado. Mas, uma semana depois, outra sentença veio a terreiro: a perna de Quito devia ser amputada. O sangue já não circulava de cima para baixo. “Implorei, mas o doutor mostrou-se irredutível, sublinhando que outra solução seria impossível”, conta.

Afinal, Quito foi atingido por uma bala na perna, mas o projéctil não ficou alojado no seu corpo. Durante dois meses e três dias consecutivos a frequentar o HCM, Maria do Carmo levava uma vida que se resumia à ida da sua casa ao hospital. Numa sexta-feira, o filho começou a ter convulsões. Procurou o terapeuta e só o encontrou na segunda-feira.

“O médico disse que a perna seria amputada na quinta-feira e eu discordei, pois o garoto estava com convulsões há três dias. O especialista disse que não sabia e decidiram eliminar a perna na mesma segunda-feira, corria o dia 15 de Setembro”, conta.

Anteriormente, a mãe havia falado com o médico para saber se o hospital ofereceria muletas. A resposta veio pronta: “Não”, conta. Ela teve de pagar uma taxa de 700 meticais referente ao internamento do filho.

Na verdade, desde 1 de Setembro que uma bala mudou completamente a rotina de uma família. Talvez por isso, no dia 1 de Setembro, Quito imaginou, mais uma vez, que voltava da escola sem passar pelo local onde as balas lhe amputaram os sonhos.


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