Tuesday, April 30, 2013

REVIVER O PASSADO EM REIQUIAVIQUE




Daniel Oliveira – Expresso, opinião

Aviso: se está sem tempo, guarde esta leitura para mais tarde. O texto é longo.

A direita que levou a Islândia à maior crise financeira que todo o mundo alguma vez conheceu num país, pelo menos nos últimos cem anos, venceu, para espanto de muitos, as eleições. Há um ano, quando lá fui fazer uma reportagem para o EXPRESSO, esperavam-se as eleições presidenciais, o julgamento do ex-primeiro-ministro e muitos suspeitavam que seria este o resultado eleitoral nas legislativas seguintes. Eu próprio fiquei convencido disso. O Presidente, um dos poucos políticos respeitados na Islândia, foi reeleito, o ex-primeiro-ministro foi absolvido e a direita voltou ao poder.

Porque tem tão pesada derrota um governo que consegue conter, depois de uma hecatombe financeira, o desemprego próximo dos 7%, consegue que a economia cresça acima da média europeia, consegue que o FMI já se tenha ido embora e deixa, no essencial, o poderoso Estado Social islandês intacto? Porque apesar de tudo isto nos parecer extraordinário, não lhes parece a eles? Porque não estavam preparados para viver esta crise e porque esperavam muito mais deste governo, depois de, pela primeira vez na sua história recente, se terem realmente mobilizando por uma mudança. As coisas não pioraram como podiam ter piorado, é verdade. Não pioraram como aqui. Mas não mudaram no fundamental. Porque vivem na Islândia e não aqui, os islandeses não terão a consciência do que teria sido a crise se tivesse sido outro o caminho. Mas sabem o que poderia ter sido a mudança se o governo tivesse acompanhado o sentimento social saído da "revolução das frigideiras". Ou pode dar-se o caso das pessoas estarem de tal forma frustradas com esta crise que não haja resposta política possível para esta ansiedade e decepção.

"O anterior governo caiu por causa de nós e isso deu-nos a sensação de ter poder. Reconheço tudo: que podíamos estar muito pior, que há julgamentos, que, ao contrário de outros, não usámos o dinheiro dos contribuintes para salvar bancos. Mas julgávamos que isto ia muitíssimo mais longe." Foi isto que uma das pessoas com quem falei me explicou para dizer porque era impopular este governo e porque não conseguia animar tanta gente afundada em dívidas aos bancos. O escritor Einar Már apontou o principal erro do governo de esquerda: "Quando os sindicatos americanos exigiram mais a Roosevelt, ele respondeu: rapazes, eu não posso fazer isso por vocês, mas vocês podem obrigar-me a fazê-lo. O nosso governo disse o contrário: vão para casa, não nos perturbem."

Deixo aqui, na íntegra (e sem os cortes que, por razões de falta de espaço, tive de fazer para edição impressa), a reportagem que então publiquei na revista do EXPRESSO. É jornalismo, sem qualquer opinião. Talvez a dimensão do texto não seja a ideal para publicar online, mas pode ajudar a compreender as razões deste resultado num país que, quando lá estive, não vivia em festa, mas em ressaca.

A minha estada na Islândia, assim como este resultado eleitoral que, como podem ver na reportagem, apesar de me entristecer não me surpreende muito, não muda a opinião que formei sobre os caminhos acertados que a Islândia seguiu. Apenas confirma que os processos políticos de ruptura não dependem exclusivamente de soluções de poder. Precisam de ser acompanhados por um processo social e têm de ser tão mobilizadores que contrariem a enorme desconfiança que as pessoas sentem hoje em relação à política. Uma reflexão para a esquerda. Sendo certa uma coisa: a direita pode ter ganho, mas a Islândia não deixa, depois de ter feito algumas opções que nem os que agora regressam ao poder se atrevem a contestar, de estar bem melhor do que Portugal, Irlanda ou Grécia. Segue a reportagem de Maio de 2012.

A RESSACA ISLANDESA

A luz clara de um dia soalheiro entra forte pelas janelas grandes do apartamento branco, bem no centro de Reiquiavique. Uma pequena vivenda de madeira, como muitas numa capital que mais parece uma vila europeia. É véspera de feriado. O dia que marca, no antigo calendário, o começo do Verão. Lá fora, estão 4 graus. Uma festa para os islandeses. Foi fácil juntar Thóra, o marido, os filhos, a irmã e o cunhado. Para falar com o jornalista que queria saber da sua "loan story" (história de empréstimos). Quase todos os islandeses têm uma. Quase todas dramáticas. Num país onde 90% das pessoas têm casa própria, cerca de 40% tem hoje dificuldades em pagar as dívidas bancárias. Thóra recebe-nos com a sua enorme barriga e um grande sorriso. Duas coisas comuns na Islândia: a simpatia e a gravidez. A Islândia tem uma das mais altas taxas de natalidade da Europa. "No Inverno e sem dinheiro, o que mais há para fazer?", ri-se Thóra.

Falam todos ao mesmo tempo, interrompem-se, riem-se, provocam-se, fazendo da sua tragédia um bom motivo de piada. No meio da desgraça, Thóra e o seu marido Jón até podem rir. Sim, ele era vendedor e perdeu o emprego. Sim, tiveram, como quase todos os islandeses, problemas com o empréstimo da casa. Depois da crise, disparou. Mas a regra decidida pelo governo em 2010 impôs que nenhuma dívida pode ser superior a 110% do valor da casa. E é isso que estão a pagar com o salário de professora de Thóra, enquanto Jón toma conta dos filhos. A irmã de Thóra, Ragnhildur, que se mantém em silêncio, e o seu marido francês, Stanislas, é que estão mesmo em dificuldades. Stanislas chegou à Islândia em 1978. Por causa de uma mulher, claro. "Não foi seguramente pelo queijo e pelo vinho", diz, perante o riso de todos, habituados às suas provocações altivas. Como Jón, perdeu o emprego. É arquiteto paisagista. "Quem havia de querer jardins no meio de uma crise?"

Em 2008, quando os bancos faliram, percebeu que estava tudo acabado. Para piorar as coisas, uma súbita doença levou-lhe a perna, o que atrasou a recuperação financeira urgente. A mulher é cozinheira e é hoje quem sustenta, como Thóra, a casa. Tudo se poderia compor se não fosse, claro, a dívida. Uma parte do empréstimo estava em moeda estrangeira. Um negócio que, explicado pelos bancos aos seus clientes, parecia infalível. Veio a crise e a coroa caiu para metade. Essa parte da dívida triplicou. Com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, em 2010, que decretou que esta indexação era ilegal, voltou a descer. O resto estava, como era a regra para proteger as poupanças das tendências inflacionistas da economia islandesa, indexado à inflação. A inflação disparou e passou dos iniciais 18 milhões para 25,3. Passaram 10 anos de um empréstimo de 20 e devem bem mais do que pediram. Estão em negociações e, como muitos islandeses, há dois anos que não pagam nada. "Esperamos que o banco nos ajude a sair da alhada em que nos meteu", diz, com otimismo, Stanislas. Se nada resultar, resta declarar bancarrota, a terceira solução que o governo encontrou para os devedores. Não podem pedir empréstimos nos dois anos seguintes. Mas ficam com as suas contas limpas.

Que Deus abençoe a Islândia

Tudo começou nos anos 90, quando um grupo de jovens neoliberais do jornal "A Locomotiva" tomou o poder do Partido da Independência (de centro-direita, no poder de 1946 até esta crise) e, a partir dele, o governo. A conduzir o comboio ia Davíd Oddsson, antigo presidente da Câmara de Reiquiavique. Chegou a primeiro-ministro em 1991 e lá ficou durante 14 anos. A Islândia era, então, um típico estado social escandinavo, apenas mais clientelar e corrupto que os seus vizinhos, comandado pelo "polvo" (14 famílias poderosas). Os dois principais bancos eram públicos e dirigidos por dois partidos: o Partido da Independência e o Partido do Progresso (centrista). Assim como quase toda a economia, política e sistema judicial. Saído do poder, Oddsson tomou conta do banco central da Islândia, como seu governador. E, depois de um pequeno intervalo, o seu protegido de sempre, o antigo ministro das Finanças Geir Haarde, chega a primeiro-ministro, em 2006.

Num processo mais alargado de liberalização da economia, os dois bancos públicos foram privatizados e ficaram exclusivamente na mão de quadros dos dois partidos do poder. Landsbanki para um, Kaupthing para outro, e um terceiro, o Glitnir, foi criado por pequenas instituições públicas e privadas. Seriam estes três bancos, com a proteção do poder político e do Banco Central, a levar a Islândia à desgraça. Em 2001, um conselheiro de Davíd Oddsson escrevia um relatório com o sugestivo título: "Como fazer da Islândia o país mais rico do mundo". Estava encontrado o caminho: criar, no meio do Atlântico, um paraíso financeiro. O trabalho começou com dois enormes projetos internacionais para uma central eléctrica e uma fundição de alumínio. Era o começo da massiva entrada de dinheiro que os novos bancos precisavam. A partir daí, iniciou-se a roda viva da compra e venda de ações dos bancos, entre si, a transformação de poupanças em ações e a caça desvairada ao empréstimo. Mas este mercado era demasiado pequeno e o Landsbanki criou a Icesave, que funcionava na Internet e permitia depósitos internacionais. E é assim que, em 2007, os três insignificantes bancos já valem oito vezes o PIB da pequeníssima Islândia. Mais do que isto, só na Suíça. Até que veio a crise imobiliária nos EUA e a bolha rebentou.

A 8 de Outubro, o primeiro-ministro informava a um País a transbordar de dinheiro e de dívidas que os três bancos tinham falido. Ao mesmo tempo. No mesmo dia. "Deus abençoe a Islândia", conclui Geir Haarde. Nesse mesmo mês não era Deus que socorreria a ilha. Era o FMI. Em Novembro de 2008 a coroa caía de 70 por euro para 190 por euro. A derrocada islandesa entrava diretamente para a lista dos 11 maiores colapsos financeiros da história mundial.

À volta de um peixe, num restaurante da Laugavegur, a mais animada rua da capital, que nos fins de semana se enche de raparigas demasiado despidas para a temperatura pouco convidativa e de rapazes demasiado alcoolizados para o sossego dos turistas que enchem os hotéis, Gulla tenta dar o retrato da Islândia que reencontrou em 2008, aquatro meses da crise rebentar. Primeiro as apresentações. Gulla tem dupla nacionalidade. Portuguesa e islandesa. Estudou em Coimbra e é tradutora. Agora trabalha numa embaixada. Foi viver para Portugal depois de conhecer o seu marido. Viveu 25 anos em Leiria. Metade de uma vida. Quando finalmente regressou sentiu-se uma intrusa no meio de uma festa.

Conta que, quando chegou, o banco lhe ofereceu, sem que ela o tivesse pedido, um plafom de crédito de 10 mil euros. Três vezes superior ao seu salário na altura. Isto para além do que já lhe ofereciam na sua conta à ordem. "As pessoas iam de férias para o estrangeiro no Inverno e no Verão, sem problemas. Os refeitórios dos bancos tinham chefes gourmet." O melhor Natal para o comércio local, em muitos anos, foi depois de rebentar a crise. "As pessoas iam a Londres fazer as compras de Natal", conta Gulla. Nesse ano ficaram em Reiquiavique. Stanislas já explicara como se passavam as coisas: "Podíamos ir de manhã ao banco e voltar de lá com 10 milhões de coroas. Era terrível." Jón interrompe: "Terrível? Era bom. Agora é que percebemos que é terrível." Em 2007, o rendimento médio da Islândia era o quinto maior do Mundo: 160% do dos Estados Unidos. Um estudo internacional indicava, em 2006, que os islandeses eram "o povo mais feliz do mundo". Mas não nos iludamos com as aparências. Nos meados dos anos 90 a igualdade na distribuição dos rendimentos disponíveis era semelhante à da Noruega. Em 2007 estava próxima da dos Estados Unidos, o país mais desigual do mundo desenvolvido. Num país orgulhoso da sua cultura igualitária, este crescimento desigual, seguido de tamanho trambolhão, abalou os alicerces de toda a sociedade. Gulla viu, diante dos seus olhos, um povo a mudar do dia para a noite: "Nas primeiras semanas não havia ninguém na rua e nas lojas. Era como se fosse pecado divertirem-se, comprarem, viajarem."

A revolução das frigideiras

Depois do choque veio a revolta. Começou logo em Outubro, com pequenas manifestações em frente ao Parlamento. Thóra conta, com um brilho nos olhos, como, no início, eram umas dezenas: "Faziam pouco de nós". Mas lá continuaram a ir, no gélido e escuro inverno islandês , todos os sábados. Os discursos, que passavam na televisão, chamavam cada vez mais gente. Na primeira reunião do Parlamento, depois das férias de Natal, a manifestação atingiu novas proporções. Milhares de pessoas. Invadiram o edifício, houve confrontos com a polícia, atiraram ovos a Geir Haarde, o primeiro-ministro em exercício. Tudo absolutamente impensável na recatada e ordeira Islândia. "Em trinta anos nunca tinha visto tal coisa", diz Stanislas. Três meses depois do começo da "revolução das frigideiras" o governo caiu. Novas eleições dariam a vitória ao primeiro governo, desde 1946, sem o Partido da Independência. Os social-democratas, dirigidos por Jóhanna Sigurdardóttir, ativista lésbica de 70 anos, aliavam-se à esquerda-verde. Mas os islandeses queriam mais do que mudar de governo. E tiveram mais.

A ideia de rever a Constituição começou nas redes sociais. E a 26 de Outubro são eleitos, entre 500 candidatos anónimos que fizeram campanha nas redes sociais, 25 membros de um Conselho Constitucional. Para presidir este original instituição de democracia direta é escolhida a professora de ética e filosofia, Salvor Nordal. Ficara conhecida pela sua ativa participação na comissão, nomeada pelo Parlamento, a meio da "revolução", para investigar os bancos. E foi o que descobriu sobre o comportamento dos banqueiros, que punha em causa todas as suas convicções, que a levou uma mulher sem grande passado político a ter uma participação mais ativa: "O comportamento irresponsável dos bancos foi menos inocente e mais institucionalizado do que eu esperaria, com uma clara intensão de transferir os riscos que corriam para terceiros." Quanto ao anterior governo, é menos severa: "Todas as pessoas achavam extraordinário haver tanto dinheiro. As pessoas estavam bêbedas. O problema é que, no dia seguinte à festa, temos duas possibilidades: ou decidimos que paramos de beber ou achamos que precisamos de uma bebida para a ressaca passar. E às vezes tenho a sensação que anda muita a gente à procura de um bar aberto."

Em Julho de 2011 a proposta do conselho constitucional é entregue ao Parlamento. Terá de ser aprovada pelos deputados antes das próximas eleições, daqui a um ano. E de novo pelo parlamento que se lhe seguir. Segundo a proposta, 10% da população pode impor um referendo, a impopular candidatura da Islândia à adesão à União Europeia (apenas 17% a defendem) tem de ser referendada e os recursos naturais que ainda sejam públicos não podem ser privatizados.

Feito o caminho pela estrada que atravessa a desoladora e repetitiva paisagem em volta da cidade, é difícil perceber que chegámos a um edifício oficial. Três pequenas casas brancas. Nem um único polícia. Toca-se à campainha e um funcionário, de calças de ganga, abre a porta. Lá dentro, seria a casa discreta de uma família de classe média endinheirada. Entramos na pequena biblioteca. E lá chega um velho alto e afável. Só quando começa a entrevista percebemos que não estamos perante um simpático avozinho nórdico. E percebe-se porque é que, apesar do terramoto, este é um dos poucos homens em que os islandeses ainda têm alguma confiança. Foi dos poucos que percebeu o que significavam as inéditas manifestações de 2008 e 2009.

Depois da bancarrota, dois dos três gigantes falidos conseguiram, apesar de tudo, pagar aos seus depositantes estrangeiros. O problema mais complicado de resolver estava nas mãos do Landsbanki e da sua criação no mundo virtual: o Icesave. E mesmo este banco começou, recentemente, a pagar o que devia. Ao contrário do que geralmente se julga, a questão nunca foi se as dívidas eram pagas. Mas quando e por quem. Só que os governos do Reino Unido e da Holanda não esperaram. "Apressaram-se, pagando aos depositantes dos cofres dos seus Estados, na convicção que poderiam enviar a conta para os contribuintes islandeses", explica-nos o Presidente da Islândia. Quando o novo governo se preparava para, como todos os restantes, pagar a conta, Ólafur Grímsson fez o impensável: marcou um referendo. E nunca um político pareceu tão isolado como então: "Todos os governos europeus, todas as instituições financeiras e quase todas as forças com poder no meu próprio país, incluindo o governo e a maioria do Parlamento, foram contra a minha decisão". Os avisos vieram: "Ficaríamos isolados durante décadas. Seríamos a Cuba do norte. Nunca mais ninguém quereria fazer negócios connosco. Nada disso aconteceu. Três anos depois da crise estamos a caminho da recuperação." Apesar dos dramas de milhares de famílias endividadas, o desemprego anda próximo dos 7%, alto para a Islândia mas muito baixo para a generalidade dos países em crise. O crescimento do ano passado foi de 3%, o deste ano andará pelos 2,5%. O FMI já se foi embora, com as contas fechadas e mais nada para fazer.

Grímsson estava determinado: "Não vamos ter um sistema onde os bancos podem funcionar como querem. Se tiverem sucesso, os banqueiros recebem enormes bónus e os seus acionistas recebem o lucro, mas, se falharem, a conta será entregue aos contribuintes. Porque serão os bancos tão sagrados para lhes darmos mais garantias do Estado do que a qualquer outra empresa?"

Os islandeses foram votar e nem o establishment político teve coragem de enfrentar a fúria popular. O resultado foi esmagador: 92% votou "não". Nascia assim o perigoso exemplo islandês. Como reação, o Reino Unido aplicou uma lei antiterrorista para acabar com todas as transações com a Islândia, pondo-a numa lista ao lado dos talibã e da Al-Qaida.

Cidades fantasmas

Em Hafnafjördur, a sul de Reiquiavique, há cidades sem cidade. Ruas, rotundas, cadeeiros. Tudo o que o espaço público precisa. Mas sem prédios nem casas. Apenas o mesmo cenário lunar de sempre. Até que começam os prédios. Quase todos vazios. Uma cidade fantasma que nos conta a tragédia islandesa. O dinheiro era barato e as construtoras nasciam como cogumelos. As autarquias planearam um crescimento urbano que nem o mais empenhado labor demográfico islandês poderia garantir. Fizeram-se as estradas e, em muitos casos, fizeram-se os prédios. Isto foi em 2007. Em 2008 rebentou a crise. E aquilo ficou ali, congelado, a lembrar a loucura de outros tempos.

Mas na casa de Hugrún e do seu marido Gudfinnur a densidade populacional é maior do que eles desejariam. Três crianças correm pela casa, moderna mas acanhada. Há apenas dois quartos. Um para eles e para os dois mais pequenos. Outro para o mais velho. A crise marcou definitivamente o seu futuro. Em 2005 compraram um apartamento. Pediram um empréstimo. Metade em moeda estrangeira. Dos 13 milhões que receberam ficaram a dever mais de 21 milhões. Tiveram sorte: conseguiram vender o apartamento apenas um pouco abaixo do que a dívida. Ainda havia a do carro e outros empréstimos pessoais. "Saía tão barato", explica Hugrún, "eles telefonavam a toda a hora a oferecer dinheiro".

Com grande parte das dívidas pagas, não sobra dinheiro. Ela não tem emprego, são três crianças e uma casa pequena. Comprar outro apartamento? Só pedindo um empréstimo. Nunca mais. E para alugar um maior não há dinheiro. Apesar de aos bancos sobrarem casas (já ficaram com cerca de três mil), não arrendam mais barato nem vendem, para não fazerem cair os preços e perderem assim o valor do seu património. Como a procura aumentou, arrendar é agora ainda mais caro. Solução? Vão, como muitos, para a Noruega.

Turismo, peixe e Internet

Volta-se ao centro de Reiquiavique e o ambiente dá algumas razões para otimismo. Partem, a todas as horas e de todos os hotéis, autocarros cheios de turistas para as muitas atrações naturais da Islândia. Com a queda da coroa os islandeses perderam e ganham. Perderam nos seus empréstimos, nos seus salários e na compra de produtos importados. Ganharam nas exportações e no turismo. Um fenómeno de Verão passou a ser uma das principais fontes de receita todo o ano.

Um dos principais destinos é a Lagoa Azul. Uma piscina natural com temperaturas acima dos 30 graus. É um dos principais cartões postais da Islândia. Quando se sai da água é quase impossível aguentar muito tempo sem um abrigo: o vento gélido empurra-nos para a água quente de novo. Mas um pequeno chinês resiste, tremendo num canto, para tentar acender um cigarro. Li, um comerciante de Xangai, representa o jackpot de oportunidades que a crise trouxe à Islândia. Não é apenas turista. Veio em negócios. Habituado a exportar, é a importação que o traz à ilha. Com a queda da coroa e um yuan forte o negócio do peixe promete ser rentável. "Eles têm muito peixe, nós temos muitas bocas".

Mas nem só de comida vive o mundo. E os islandeses descobriram a segunda principal necessidade humana: o divertimento. Quando a CCP nasceu, em 1997, eram apenas três jovens ambiciosos. Hoje são 590 funcionários. Metade está em Reiquiavique. Os restantes em Atalanta, Xangai e Newcastle. Metade dos funcionários da sede são estrangeiros. Os outros islandeses. Tudo roda à volta de um jogo. Espalhados por todo o mundo uma horda de fanáticos de "Eve Online" garante o crescimento da empresa. 300 mil jogadores registados. É quase a população da Islândia. O suficiente para serem hoje a maior empresa instalada no porto de Reiquiavique.

A sede da CCP corresponde a todos os clichés das empresas de IT. Quase todos jovens. Gente de todo o mundo. Um ambiente descontraído. Mesas de bilhar e de pingue-pongue. Para além do refeitório, um médico, um massagista e um cabeleiro vão lá todas as semanas. Não se recebe maravilhosamente. Mas paga-se em euros, o que é uma enorme vantagem na galopante inflação que a Islândia tem conhecido nos últimos três anos. Como as receitas são em divisa estrangeira e o mercado não está na Islândia foram pouco afectados pela crise. E algumas coisas até melhoraram. "Depois da crise muita gente perdeu o emprego e decidiu dedicar-se ao que gosta, por isso passámos a ter aqui mais mão de obra disponível", explica Eldar Astthorsson, o relações públicas que veio da indústria musical. O país tem, segundo Eldar, tudo o que esta indústria precisa para crescer: um excelente sistema de ensino e um ambiente criativo fervilhante. "A indústria de IT não cresce num país onde não haja muita atividade cultural tradicional. É a ela que vamos buscar os músicos, os guionistas, os estilistas, os desenhadores e os realizadores que fazem os nossos jogos. Os computadores não chegam para garantir a indústria de entretenimento."

Está então resumida a saída para Islândia: peixe, turistas e Internet. Têm tudo o que é preciso. Peixe em abundância. Energia e água de graça, garantidas pela natureza. Beleza natural, com exotismo quanto baste. Nada disso, independentemente da crise, se vai embora. A coroa barata e uma população extraordinariamente educada fazem o resto.

A enorme decepção

As vivendas com jardins relvados fazem lembrar os filmes de Hollywood sobre a pacata vida suburbana. Elisabet apanha algum lixo perdido em frente à sua casa. Sveinn está lá dentro. Recebem-me como sempre: um sorriso aberto e um pedido que me descalce à porta. O porteiro é um pequeno duende de louça. No jardim, um velho barco espera arranjo. Com 75 anos, Sveinn pode estar reformado, mas não se esquece da sua profissão de quase sempre: carpinteiro de embarcações. Elisabet, com 73, era professora de culinária. Uma arte que, definitivamente, não está no ADN dos islandeses. Basta provar o tubarão podre com cheiro a amoníaco que é o pitéu nacional para o perceber. Sentamo-nos à mesa. Elisabet faz as despesas da casa. É ela que tem algum passado de empenhamento político. E, quando foi a revolução, voltou à carga. Participou nos inúmeros debates públicos. Propôs várias emendas à constituição. Uma passou: a linguagem gestual será uma das línguas oficiais na Islândia. Só perde o sorriso quando falamos dos políticos nacionais. Levanta-se num esbracejar indignado. Sveinn tem gestos mais curtos. Sobretudo quando se fala de Davíd Oddsson, antigo governador do banco central. Com o dedo indicador traça um risco no pescoço. Guilhotina, portanto. Quando toca a falar do futuro da Islândia, não hesita: "Faremos o mesmo de sempre: vamos à pesca. Os portugueses vão continuar a comer bacalhau, não vão?"

"É verdade que muita gente gastou dinheiro que não tinha", diz Sveinn, "mas a maioria foi enganada". Porquê? "Era a mensagem que os bancos e o governo passavam para toda a sociedade: Gastem!" Nem a mudança de governo reconciliou Elisabet com os políticos: "Esperava melhor. Prometeram muito. Não fizeram nada. As estatísticas não contam. Se toda a gente levantar os seus depósitos vamos para a bancarrota." Da primeira-ministra, acha que "baixou as calças". "Começou bem, mas agora é como se tivesse uma pistola apontada à cabeça". À sua ira sobrevive apenas o Presidente: "não teve medo de enfrentar a Icesave, fala bem, é educado e conhece os problemas". A quase unânime impopularidade do atual governo devolverá o poder ao Partido da Independência? Não acreditam.

O parlamento, perante a ira pública, reavivou um velho tribunal para governantes (Landsdómur) para julgar as responsabilidades políticas desta crise. O ex-primeiro-ministro Geir Haarde sentou-se no banco dos réus. E ouviu, no dia 23 de Abril, o veredicto: inocente de três das quatro acusações. Culpado por não ter mantido os seis ministros adequadamente informados. Nada que espante os islandeses. Quase todos acham que ele não passava de um bode expiatório e que muito mais gente deveria ser julgada. E será. Um outro processo, que avança pelas mãos de uma Procuradoria-Especial para os Crimes da Banca, irá julgar responsáveis por instituições financeiras. Mas há muita impaciência. Thóra explica porquê: "Sim, fomos os únicos na Europa a processar alguém. Estamos contentes com isso. Mas apenas um foi condenado". Reconhece a dificuldade da coisa: "Somos muito pequenos. Toda a gente é amiga de toda a gente. Claro que isto tinha de ser corrupto." Para Elisabet, os julgamentos, assim como o referendo, ajudaram a acalmar as pessoas. Mas servem de pouco. "Ninguém irá para a prisão", diz ela. Sveinn discorda: "alguma vez acontecerá". E enumera, com os dedos, os que quer ver atrás das grades. Os dedos das duas mãos esgotam-se. Quase tudo banqueiros. Reconhecem os dois, no entanto, que os islandeses foram os únicos a ir tão longe na responsabilização dos culpados. "Mas podemos espremer mais os poderosos", diz ele.

Stanislav resume o que quase todos pensam: "O governo de Geir Haarde teve todos os sinais. Tinha toda a informação. Não fez nada. O novo governo teve boas ideias no início. Agora não faz nada". Ou seja: não sobra, da velha política dominada por quatro paridos, quase nada que dê esperança aos islandeses. E é isto que os parece deixar à deriva. Gulla é menos condescende com os seus concidadãos: "Esperavam que, com um governo de esquerda, não houvesse cortes e agora culpam todos os políticos, todos os que tenham experiência. É popular quem não é político. Estavam habituadas ao bom demais e agora é mais fácil culpar os governos." E os não políticos, ou quem nunca teve responsabilidades governativas, parecem ser os únicos a quem as pessoas dão ouvidos.

O comediante, a estrela da TV e a economista

Jon Gnarr recebe-nos no seu gabinete, com uma enorme janela para o Lago de Reiquiavique. De fato, colete e um corte de cabelo um pouco excêntrico, não se diria um político comum. Porque não é. Gnarr foi um dos primeiros efeitos colaterais da crise, que se abateu sobre todos os políticos tradicionais. O "Melhor Partido", que não tem nem militantes, nem direção, nem programa, venceu as eleições autárquicas de Reiquiavique, apesar de prometer coisas tão prosaicas como toalhas gratuitas nas piscinas e um urso polar no Zoo. Antes de ser presidente de Câmara, Gnarr era o mais popular comediante da Islândia. E, fazendo rir, desalojou o todo poderoso Partido da Independência da Câmara Municipal da capital.

Diz que não é político. Como pode um presidente da câmara da capital não ser político? "Se eu for viver para Bélgica quando é que me torno um belga? Só quando as pessoas começarem a dizer: ah, agora já começas a comportar-te como um belga." Aceita o seu papel: "fui uma opção com graça, inofensiva e pacífica aos políticos previsíveis." E explica a inexistência de futuro na sua nova carreira: "Sou como o foguete que lança a nave. Provoca muito barulho e luz, mas explode quando deixa de ser necessário. Só que a nave continua o seu caminho."

Gnarr está longe de ser a única excentricidade da nova política islandesa. O Presidente, graças ao seu papel no referendo, é um dos poucos políticos populares no ativo. Mas nem ele escapa ao terramoto. Numa eleição que costuma ser um "pro forma", arrisca-se a perder nas urnas. Uma sondagem indica que está empatado com a candidata sensação do momento: Thóra Arnórsdóttir. É jornalista e apresentadora de televisão. O que pensa Thóra sobre a situação política, social e económica da Islândia? Ninguém sabe. Melhor: todos sabem. "Não pensa nada". Mas é simpática e o Presidente está lá há 16 anos. Nos corredores da política sabe-se que a candidatura de Thóra é vista com bons olhos pelo governo. Não fará ondas.

Num país que foi durante muitas décadas governado pelas mesmas pessoas, onde poucas famílias dominaram as empresas, os media, onde o nepotismo e a corrupção o distingue dos restantes nórdicos, a crise abalou todas as estabilidades políticas. Nasceram novos partidos. Os velhos, que continuam ao leme, ficaram mais fracos. Surgiram novos rostos que a política desconhecia e que desconheciam a política. Gnarr é a parte burlesca disto. Thóra a parte desconcertante. Mas surgem novas estrelas, um pouco mais consistentes. Lilja Mósesdóttir é hoje uma das deputadas mais populares. Provavelmente a única. Saiu da Esquerda-Verde em confronto com as grandes escolhas do novo governo, dirigido pela Aliança Social-Democrata e pelos ecologistas. Está a formar o Solidariedade, mais radical. Nas sondagens, já teve 20%. Agora tem 9%. Mas, na autêntica montanha russa que é a política islandesa, e quando metade do eleitorado não sabe em quem vai votar ou se vai votar, pode bem voltar a subir. Ou a descer tanto que, como diz a sua líder, nem vai a votos. Uma coisa é certa: na Islândia, todos conhecem a professora de economia que, caloira no parlamento, faz as despesas da oposição de esquerda. E mesmo os que acham demasiado radical dizem, sem hesitar, que a respeitam. Até porque foi, como académica, das poucas a avisar para a caminhada que a Islândia fazia para o abismo.

No minúsculo gabinete que o Parlamento reserva para os deputados independentes, Lilja explica-nos a sua ruptura com a primeira maioria de esquerda a governar a Islândia: "É verdade que as coisas podiam estar bem piores, mas são pessoas normais é que estão a carregar o fardo da crise. As caras no sistema bancário são mais ou menos as mesmas." E sobre a aparente boa situação económica, põe água na fervura: "para conseguirmos pagar as nossas dívidas temos de ter um crescimento de 4% e não estamos a conseguir." Thórólfur Matthíasson, adversário de Lilja no debate económico, responsabiliza a oposição pela impopularidade do governo: "O partido que construiu as fundações para este colapso e que tem feito um discurso populista, em que critica os acordos que antes defendeu, está com 35% nas sondagens. Podemos voltar para o mesmo de sempre."

A Islândia foi dos poucos países a recusar-se a pagar, com o dinheiro dos contribuintes, a dívida de um banco. Os empréstimos, graças a decisões da justiça e do governo, acabaram por descer. Prepara-se uma revisão constitucional. Um ex-primeiro-ministro foi julgado. Vários responsáveis pela crise financeira aguardam julgamento. O desemprego está abaixo da maioria dos países atingidos pela crise. Tem um crescimento acima dos restantes países europeus. O FMI já se foi embora e o Estado Social foi, no essencial, poupado. Três anos depois da Islândia ter vivido, tendo em conta a sua dimensão, a maior crise financeira de que há memória no Mundo Ocidental. E, apesar de tudo isto, os islandeses olham com espanto para quem os vê como exemplo. E estão frustrados e zangados com o primeiro governo de esquerda. Difícil de perceber? Thóra tenta explicar: "O anterior governo caiu por causa de nós e isso deu-nos a sensação de ter poder. Reconheço tudo: que podíamos estar muito pior, que há julgamentos, que, ao contrário de outros, não usámos o dinheiro dos contribuintes para salvar bancos. Mas julgávamos que isto ia muitíssimo mais longe." Sim, talvez sejamos mimados." E pela primeira vez deixa-se abater. "Não, não se trata de mimo", responde Lilja, no seu pequeno gabinete parlamentar: "A esperança foi muita. E o governo está a fazer o mesmo que o Partido da Independência faria: até querem privatizar energia."

Talvez o melhor seja ir procurar um olhar mais distanciado. Para lá das desavenças políticas do momento e do desespero de quem esperava muito mais.

Descemos a pequena colina atravessada pela principal artéria da cidade. Uma rua estreita, cheia de pequenos edifícios com as melhores lojas da cidade. Onde desfilam luxuosos jeeps comprados no tempo da fartura. Ao meu lado, Einar Már Guomundsson faz de cicerone. Aponta uns pequenos becos. Mesmo no começo da Bankastraeti (Rua dos Bancos), onde já não existe banco nenhum. É o número zero, diz ele. E foi aquilo que deu o título ao seu último livro: "Bankastraeti Núll" (Rua dos Bancos, número zero). Uma ácida provocação ao papel das instituições financeiras na crise. Quem é de Reiquiavique percebe. A expressão tem uma tradução no calão local: urinar.

Einar Már é o mais importante escritor islandês vivo. Este ano recebeu o Prémio da Academia Sueca, conhecido como o "Pequeno Nobel". Foi uma voz fundamental nas revoltas de 2008. Sentamo-nos num dos principais cafés da cidade. Pede o de sempre: um termo de café que vai esvaziando ao longo da conversa. As circunstâncias podem tê-lo transformado num ativista, mas mantém o otimismo e é muito menos severo com o atual governo, "que tem contra qualquer mudança todos os grandes poderes". O seu principal erro? "Quando os sindicatos americanos exigiram mais a Roosevelt, ele respondeu: rapazes, eu não posso fazer isso por vocês, mas vocês podem obrigar-me a fazê-lo. O nosso governo disse o contrário: vão para casa, não nos perturbem." Mas está longe de desvalorizar o que se conquistou: "Fomos uma espécie de laboratório, onde tudo foi muito nítido. E fomos capazes de lutar e mostrar alguma solidariedade. Não achámos o paraíso e a verdade absoluta. Mas pelo menos refrescámos qualquer coisa que estava perdida."

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