Rodolpho Motta Lima – Direto da Redação
Vocês podem não acreditar, mas eu já tinha escrito esta coluna quando li o contundente texto do Urariano sobre os médicos “marcianos”... Vamos a ela.
Millôr Fernandes, com a ironia que lhe era peculiar, escreveu que, depois de passar horas lendo os epitáfios de um cemitério, um marciano perguntou para o outro: “Onde será que eles enterram os canalhas?” Afinal, em um cemitério, os túmulos tendem a apresentar frases que glorificam os falecidos, carregados de elogios saudosos e virtudes hiperbólicas. Em um cemitério, pelo menos na aparência, não há lugar para os malvados, os perversos, os bandidos.
Parece que esses dois marcianos retornaram ao planeta de origem com uma ideia nada salutar a respeito da nossa intrínseca honestidade, cônscios da nossa hipocrisia. Talvez por isso tenham sido convidados pelos terráqueos a voltar ao nosso planeta para, quem sabe, alterar as impressões depreciativas da primeira viagem. Uma segunda chance.
Convite feito, convite aceito. E, para evitar surpresas desagradáveis, os da Terra combinaram com os de Marte que o objeto de análise, dessa vez, seria o país tido e havido como líder do mundo democrático dos humanos. Assim, não haveria equívocos e o nosso prestígio seria restabelecido. Os homens da Terra seriam iguais aos de Marte.
O que se segue reproduz trecho de diálogo travado entre um dos marcianos, o mais inquiridor, e um assessor da nação-modelo, especialmente designado pelas autoridades, um PHD das relações interplanetárias, especialista em argumentação paradoxal, capaz de prestar todos os esclarecimentos aos curiosos visitantes:
MARCIANO: - Em nossa terra de origem, a igualdade é geral. Não conhecemos discriminação nem preconceito. Aqui também é assim?
ASSESSOR: - Sem dúvida! Somos a nação da liberdade, o país da luta incessante pelos direitos humanos.
MARCIANO: - Mas... e esta notícia aqui, que menciona a absolvição de um homem branco que matou a tiros um jovem negro desarmado? Não é uma prova de que a discriminação ainda é forte entre vocês?
ASSESSOR: - Claro que não. O nosso presidente até disse que podia ter sido ele a vítima... Esse é um argumento definitivo para a não existência do preconceito entre nós. Até o presidente poderia ter sido morto...
MARCIANO: - Bom, se é assim... Mudando um pouquinho de assunto, mas ainda dentro do tema. Os direitos humanos... Eles são efetivamente respeitados aqui? Não há problemas nessa área?
ASSESSOR: - Orgulhamo-nos de ser a nação que não apenas pratica internamente, mas assegura esses direitos no mundo inteiro. Essa é uma das nossas marcas.
MARCIANO: - Então é falsa a existência, em uma ilha vizinha, contra a vontade de seus habitantes, de um complexo penitenciário que mantém presos centenas de homens sem julgamento, sujeitos à tortura e coisas do gênero?
ASSESSOR: - Ah! Isso é diferente... São feras humanas, bandidos planetários, terroristas perversos, um perigo para a Humanidade.
MARCIANO: - Mas... por que não são julgados e condenados, conforme fazemos em nosso planeta?
ASSESSOR: - Ah! Isso é porque não foram acusados de nada, objetivamente. Como julgá-los!?
MARCIANO: - É...Faz sentido... Se não fosse essa explicação tão clara, a gente poderia pensar que não se respeitam as liberdades e os direitos individuais.
ASSESSOR: - Sim, mas descanse... Nós estamos sempre atentos a isso. A individualidade e seus direitos são sagrados para nós...
MARCIANO: - Então não é verdadeira a notícia de uma espionagem planetária a contas de e-mails nacionais e estrangeiros? E não existe perseguição a quem a denunciou?
ASSESSOR: - Não sei o que disseram a vocês. Na realidade, o que existe é uma defesa dos cidadãos do mundo. Queremos evitar o terrorismo , aqui e fora daqui. O que você chama de espionagem é informação... Somos os melhores nisso também !
MARCIANO: - Percebo... Então vocês acham que o homem que revelou o procedimento de invasão da privacidade das pessoas é um mal intencionado, um terrorista disfarçado, um ser contrário à democracia, um inimigo da cidadania?
ASSESSOR: - Perfeito ! Você tirou as palavras da minha boca...
MARCIANO: - Sei...Assim como vocês querem tirar do ar algumas bocas que dizem certas palavras...
ASSESSOR: - São os ônus da liberdade. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”!
MARCIANO: - E quanto aos meios? Vale inventar armas mortíferas que não existem? Vale matar gente inocente com aviões não pilotados? Vale patrocinar ditaduras sanguinárias com dinheiro fornecido aos seus exércitos?
ASSESSOR: - Bom...são muitas perguntas... Mas, pela ordem: as armas mortíferas existiam, mas sumiram... Devem estar afundadas nos campos de petróleo que conquistamos para a Humanidade... Quanto à gente inocente que morre, é perfeitamente explicável: estavam no lugar errado, na hora errada, são os azarados da guerra... Já o dinheiro que damos para os exércitos ditatoriais, ele é usado para a compra de armas que nós vendemos; logo, o dinheiro volta para nós, não fica lá... Ou não?
MARCIANO: É, volta mesmo... E como...
O diálogo prosseguiu nesse tom. Parece que, ao voltar para o planeta vermelho, o tal marciano inquiridor – quase convencido que os homens não são nada de Marte - perguntou para o outro: “Onde será que eles escondem os cidadãos democratas?”
*Advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
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