Thursday, August 1, 2013

Os novos alinhamentos sincronizados, ou o sol que teima em brilhar sobre Damasco



Rui Peralta, Luanda

I - No dia 7 de Junho deste ano, a residência do Embaixador britânico em Ancara, foi palco de um encontro com oficiais superiores dos serviços de inteligência da NATO (representada pelos USA, UK, França e Turquia), Arábia Saudita, Qatar e Jordânia (esta ultima representada apenas pelo seu embaixador em Ancara). Os pontos em discussão relacionavam-se com o avanço das forças governamentais sírias no terreno. Três pontos devem ser realçados, nas conclusões deste encontro: 1) A moral das forças rebeldes e formas de a elevar através da utilização da indústria mediática ocidental e Árabe (ou seja vamos assistir a um desfilar incomensurável de argumentos e factos fabricados pela máquina propagandística); 2) O reforço do suporte logístico e financeiro, sendo este ultima assumido pela Arábia Saudita e pelo Qatar; 3) A necessidade de enquadrar os bandos da Al-Qaeda na região (principalmente a Frente Al-Nusra) e formas de contornar a legislação antiterrorista em vigor na maioria dos países da NATO, no sentido de conseguir uma maior coordenação com a Al-Qaeda, no conflito sírio.

Quinze dias depois, a 22 de Junho, o grupo formado pelos estados agressores, conhecido por Amigos da Síria, encontram-se no Qatar. O presidente da França, François Hollande e o Secretário de Estado John Kerry marcaram presença neste encontro. O grupo internacional de agressão á Síria considerou a moral dos rebeldes, afectada pelas derrotas sucessivas no terreno e a urgência do fornecimento de mais equipamento, armas e munições, devendo o apoio ser canalizado para o Supremo Conselho Militar Sírio, o organismo militar da Coligação Nacional Síria (CNS). Quanto á questão do suporte financeiro, os estados membros dos Amigos da Síria decidiram reforçar os meios de financiamento, aproveitando os recursos de fundações privadas, baseadas nos Estados do Golfo.

Conforme podemos concluir, pela comparação dos assuntos em discussão nos dois encontros, a reunião na residência do embaixador britânico em Ancara marcou a agenda do encontro do Qatar: a propaganda, a logística e financiamento e o enquadramento da Al-Qaeda nas acções militares. O reforço financeiro, da responsabilidade da Arábia Saudita e do Qatar é conseguido através da incorporação de capitais do sector privado, proveniente das ditas cujas “fundações”. Quanto ao enquadramento da Al-Qaeda é conseguido através da canalização do suporte logístico para o Supremo Conselho Militar (SCM), que conta com representação da Al-Nusra (tornando-se assim mais abrangente que o órgão politico, o CNS). O SCM torna-se, por sua vez, responsável pela distribuição das armas e equipamentos pelas diversas forças no palco das operações.

Enquanto isso o CNS apresentou o seu novo líder, Ahmad al-Jarba, imposto pela Arábia Saudita. O novo líder do CNS pertence á tribo al-Shammar, uma extensa tribo que se estende da Arábia Saudita ao Iraque. Al-Jarba tem também relações de parentesco com a família real saudita, através de uma das esposas do rei Abdullah. Com esta alteração nas cúpulas do CNS reforça-se a componente de ligação e subordinação á Arábia Saudita.

Após a nomeação de Al-Jarba, Ghassan Hitto, o anterior responsável do CNS renunciou ao cargo (na realidade foi demitido) e voltou para as suas negociatas privadas, nos USA, onde é empresário, assumindo a sua nacionalidade preferida: a de norte-americano (Ghassan Hitto tem dupla nacionalidade, síria e norte-americana). Hitto contava com o apoio do Qatar e da Turquia, tendo sido um nome imposto pelos USA. O seu mandato foi de curta duração (tinha assumido funções em Março deste ano) e não resistiu às sucessivas derrotas militares que provocaram esta nova alteração de forças no órgão político da oposição síria. Estas alterações no CNS significam uma supremacia da influência saudita e um recuo do eixo Qatar-Turquia. Em termos da composição partidária do CNS a Irmandade Muçulmana Síria, que era a força preponderante no CNS, perdeu peso político na estrutura interna, em função do novo eixo saudita, que privilegia outras organizações, surgidas durante o conflito e que se inserem no perfil do novo eixo dominante.

É evidente que os USA aprovam a supremacia saudita no interior do CNS, primeiro porque as lideranças anteriores revelaram-se ineficazes, não conseguindo um compromisso politico no terreno e perdendo influência para os novos grupos oposicionistas, surgidos no desenrolar dos conflitos e segundo, pela completa descoordenação no relacionamento com o braço militar. Foram muitas e públicas, as divergências com o ELS, o Exercito Livre da Síria e o CNS nunca conseguiu o respeito dos comandantes militares.

II - Mas também do lado governamental houve remodelações. O partido BAAS substituiu toda a liderança (excepto Assad, claro), que fora eleita em 2005. Deram lugar a uma nova geração de dirigentes, muitos deles provenientes dos meios diplomáticos. O presidente do parlamento, Jihad al-Laham e o primeiro-ministro, Wael al-Halqi, também foram substituídos.

Assad, numa entrevista a um órgão do partido, explicou que os dirigentes foram removidos porque cometeram erros, no exercício das suas funções. Falou Bashir al-Assad: “Quando um dirigente não corrige os erros, tem de ser responsabilizado.” Pelos vistos Assad não cometeu erros, pois não foi substituído, pelo menos no cargo de secretário-geral do BAAS (A actual constituição síria separa a parra da uva, pelo que o presidente não necessita de estar ligado a uma máquina partidária, ou ser secretário-geral de uma organização politica).

Com esta remodelação Assad esforça-se por transmitir uma mensagem á população que se agita com a inflação, o agravamento dos problemas sociais e com o longo termo da instabilidade politica e militar. Apesar de uma parte substancial dos sírios, no actual conflito, se posicionarem do lado do governo (a atitude da oposição armada, os massacres levados a cabo pelos bandos armados e o sentimento de que o país está a ser vitima de uma agressão. Empurram a população para os braços do governo) isto não impede que as suas reivindicações tenham sido colocadas de lado. Por isso Assad faz passar esta mensagem, dizendo que o Partido BAAS e o governo estão atentos aos problemas que afectam o país e a população mais carenciada.
 
Mas há outra mensagem que Assad está a fazer passar e essa não é para os sírios. A mensagem é simples: O presidente sírio continua a exercer as suas funções, o partido BAAS continua no governo, com uma dinâmica própria e a solução síria passa pelo diálogo politico com Assad, o governo e o Partido BAAS. A conclusão da mensagem é simples: á medida que o tempo passa, o diálogo torna-se inevitável, mesmo para as potências agressoras e para os seus peões sírios no tabuleiro.

A relativa tranquilidade revelada por Assad é essencialmente devida ao facto de o conflito ter ultrapassado as fronteiras da Síria e estar em processo de incubação numa série de países vizinhos, arrastando a região para um imenso turbilhão politico. Turquia, Gaza, Líbano, Egipto e Iraque sofrem os impactos geopolíticos do conflito sírio. A questão curda assume novos contornos, não apenas na Síria, mas também na Turquia e no Iraque. A agitação social toma conta da Turquia e do Egipto e mesmo nos Estados do Golfo, apesar da repressão, as ruas tornaram-se focos de contestação. O Egipto mergulha na instabilidade e o Líbano vê-se engolido pela guerra no país vizinho. Na Palestina, enquanto a Cisjordânia tenta evitar as vagas provocadas pelo conflito sírio, a Faixa de Gaza é agitada por ventos e tempestades provenientes da Síria, para além dos ventos que sopram do Egipto e que são redemoinhos provocados pela tempestade síria e que recaem, também eles, sobre a população de Gaza.
  
No Egipto, o golpe de estado militar foi uma tentativa de reajustamento da geopolítica da região. Foi um efeito visível dos “movimentos tectónicos” que afectam o Médio Oriente, a Eurásia e África. No continente africano, estas “fricções das placas”, agravarão as ingerências em toda a plataforma continental, aumentando a amplitude do leque da crise, que ultrapassará as actuais regiões onde se encontra instalado, do Atlântico ao Indico, na África Ocidental e Oriental, caminhando a passos largos para sul. Mas enquanto no Médio Oriente e na Eurásia (ou seja na plataforma da Asia Ocidental) estas dinâmicas têm nos respectivos estados actores fundamentais em todo o processo, na plataforma africana a dinâmica desenvolve-se num processo contrário. A posição da U.A. em suspender o Egipto é disso (mais) um exemplo.

Ao afastarem-se dos núcleos processuais de tensões (mesmo daqueles que surgem a Norte da plataforma continental e que constituem a articulação das dinâmicas com a plataforma da Ásia Ocidental), os estados africanos mergulham o continente nas dinâmicas incontroláveis das transformações em curso, não como actores, mesmo que secundários, no processo (como acontece na plataforma da Ásia Ocidental) mas como meros figurantes, sem qualquer decisão soberana, ou de partilha, sobre os acontecimentos.  

III - A intenção da Rússia em aproximar-se da Junta Militar egípcia, revelou-se um movimento surpreendente, para os incautos. Esta intenção não diz respeito ao Egipto, mas á Síria e surge em consequência da aceitação, por parte de Israel e dos USA, de uma força de capacetes azuis russos nos Montes Golã, em substituição das forças austríacas, que decidiram regressar ao seu país. As correntes transversais da política da região foram bem apreendidas por Moscovo. O Kremlin não perdeu tempo e falou com a junta militar egípcia, logo após o golpe.

Sergey Lavrov o ministro das relações exterior da Federação Russa afirmou: “Queremos que seja assegurada a estabilidade no Egipto e em toda a região (…) O Egipto é o país chave na região. O desenvolvimento dos acontecimentos na região e no mundo islâmico dependerão da situação no Egipto.” As palavras de Sergey Lavrov são “realpolitik” na sua melhor expressão. Lavrov, com estas palavras, deu a conhecer aos novos dirigentes no Egipto e aos estados da região (Arabia Saudita, Qatar, Turquia e Israel, em particular), assim como à “comunidade internacional” no seu conjunto, que a Rússia não se sente contrariada com o desenvolvimento da situação no Egipto, nem com as suas repercussões para a estabilidade regional.

Desta forma Lavrov baralhou as cartas, partiu o baralho e distribuiu o jogo e quando saiu do Cairo, dirigiu-se a Telavive, onde reuniu-se com Tzipi Livni, a encantadora ministra da Justiça de Israel. No final da reunião a encantadora ministra afirmou que Israel não se irá opor aos capacetes azuis russos nos Montes Golã, desde que detenha a transferência dos misseis S-300 para a Síria. Questionado, Lavrov, confirmou o assentimento israelita, não mencionou os S-300, mas reafirmou as intenções do Kremlin em enviar mil e cem soldados, sob a égide da ONU, para os Montes Golã, em substituição dos trezentos e oitentas soldados austríacos da Força de Observação e Desconexão da ONU nos Montes Golã. Mil e cem soldados, como Putin afirmou no passado mês, em Moscovo, o que surpreendeu os negociadores da ONU e os comandantes da Missão, por serem quase o quadruplo das forças austríacas anteriores, o que provoca alterações no comando da Força.

Estamos, assim, perante um desenvolvimento sincronizado de amplos acontecimentos, que revelam um novo modelo de alinhamentos e realinhamentos regionais, em torno da questão Síria e que envolvem Israel, Rússia e USA, como protagonistas, subordinando a um papel secundário a Turquia e o Qatar (sendo a Turquia transformada em ponto logístico e o Qatar em fonte de financiamento), aumentando a amplitude do leque até ao Egipto, que adquire agora um papel-chave no teatro das operações.

Ao longe Teerão acompanha as movimentações, permanecendo como actor de reserva, embora principal, mas discreto. Também ali existiram alterações, com a vitória dos “moderados”.      

IV - Após a reunião dos Amigos da Síria, a 22 de Junho no Qatar, John Kerry, o Secretário de Estado, foi de visita, no dia 25 do mesmo mês, á Arábia Saudita, onde iniciou um périplo regional, com o objectivo de discutir a questão síria. O golpe militar no Egipto já estava avançado, nesses dias finais de Junho, embora decorresse em “camara lenta.” As conversações de Kerry com o rei Abdulah, da Arábia Saudita, abordaram o Egipto e a 2 de Julho a Arábia Saudita foi o primeiro país a felicitar as novas autoridades egípcias e a queda do governo da Irmandade Muçulmana.

Poucos dias depois foi anunciado um pacote de ajuda ao Egipto, de 8 mil milhões de USD, pela Arábia Saudita e pelos Emiratos Árabes Unidos., enquanto os USA anunciavam que iam proceder á entrega dos F-16 aos militares egípcios, deixando confusos os que acreditaram na pose de Obama, quando afirmou, um dia antes, que os USA iriam suspender a ajuda militar ao Egipto. O senador republicano McCain (um grande amigo da IM, no Egipto e na Síria) entrou em desespero, quando viu que afinal Obama não cumpriu com a sua palavra e transformou-se momentaneamente num esquerdista a falar contra a “ingerência dos USA” e relembrando as lições apreendidas pelos USA, quando noutros tempos apoiaram os golpes militares que instalaram as “ditaduras militares na América Latina” o que em alguns meios conservadores dos republicanos deve ter levantado suspeitas sobre se o velho senador McCain não será um espião cubano, infiltrado no Senado e nas fileiras republicanas.

Também o Presidente Sírio foi um dos primeiros (depois da Arábia Saudita e dos Emiratos Árabes Unidos) a saudar a Junta militar egípcia. E fê-lo com um sorriso nos lábios…  

V - Por fim, no imenso role de surpresas e mudanças de atitude que marcaram os meses de Junho e Julho, em torno do conflito sírio e das suas repercussões na região, a mensagem do Ramadão, do Rei Saudita e do Príncipe Herdeiro. Reza assim: “O Reino da Arábia Saudita não permitirá que a religião seja explorada por extremistas, que apenas trabalham em prol dos seus interesses e que danam a reputação do Islão (…). O Reino da Arábia Saudita continuará, com a ajuda de Deus, sendo a defensora do Islão (…) manteremos a nossa atitude centrista e moderada.”
  
São agulhas para a IM, no Egipto, na Síria e no Sudão do Norte e para o Qatar e a Turquia, ao mesmo tempo que estendem um tapete a Assad, que considerou a mensagem saudita de “agradável”, afirmando ainda que “partilha da perspectiva saudita”. A Síria vê com agrado o novo alinhamento de posições entre russos e norte-americanos, assim como uma eventual alteração nas posições sauditas e israelitas. As consequências da regionalização do conflito são potencialmente criadoras de um ambiente de negociações que poderão conduzir a uma solução politica. Os sírios apostam, também, no novo protagonismo do Egipto, situação eventualmente causadora de agitações “pós-primaveris” no Norte de Africa, por um lado e causadora de fricções nos estados do Golfo, que serão obviamente transpostas para o interior da oposição a Assad, aliviando a situação militar síria.

Subalternizada, mas como reserva para um eventual insucesso, para além de responsável pelos trabalhos sujos (o que condiz com o baixo nível intelectual das novas elites europeias), fica a U.E., habilmente secundarizada por Moscovo, que aproveitou a obsessão da administração Obama em chegar a um acordo com o Kremlin, sobre a questão síria e as alterações geopolíticas na região. Perifericamente subalternizada, ou melhor, submissa e recolonizada, mantem-se a plataforma continental africana a sul do Sahara, balão de ensaio para uma velha, mas sempre renovada, geografia política, criadora e recriadora de novas cartografias.

É o custo do deslumbramento…e da desertificação do espírito  Visto daqui (em pleno cacimbo) Damasco, lá longe, resplandece.

Fontes
Jerusalem Post, July, 14, 2013

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