Gilberto Costa – Agência Brasil – Jornal do Brasil
Ex-primeiro ministro de Portugal (de 1976 a 1978 e de 1983 a 1985) e ex-presidente da República (de 1986 a 1996), Mário Soares tem sido uma das vozes mais críticas em relação às atuais lideranças europeias e aos políticos no poder em seu país – especialmente devido ao programa de ajustamento econômico que poderá deixar em breve 1 milhão de pessoas sem trabalho.
Quando esteve no poder pela segunda vez, Soares implantou (com o apoio do Fundo Monetário Internacional) um programa de estabilidade financeira para enfrentar déficits na balança de pagamentos, a inflação e o desemprego, que afetaram 350 mil pessoas. Ele considera, entretanto, que, em vez de medidas pontuais, o governo de Pedro Passos Coelho se perdeu em dois anos de austeridade.
Em entrevista à Agência Brasil, Mário Soares fala sobre Portugal dos dias atuais e lembra episódios vividos à época da Revolução dos Cravos, que derrubou o regime ditatorial português e hoje (25) completa 39 anos.
Confira os principais trechos da entrevista:
Agência Brasil: O senhor tem sido um crítico duro e assíduo do governo e da política econômica. Na sua opinião, este é um dos momentos mais difíceis desde a Revolução dos Cravos?
Mário Soares: É o mais grave. Nunca houve tanto desemprego, tanta pobreza, tanta miséria e tanto desespero por parte da população. Este governo tem que cair e espero que caia o mais depressa possível, pois está matando o país com esse neoliberalismo que exige estabilidade e pagamento à Troika (formada pelo Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia), súdita dos mercados que querem ganhar dinheiro e não querem emprestar nada.
ABr: Não é um programa de “ajuda financeira”?
Soares: Não, é o contrário. Nos obriga a pagar juros altíssimos pelo empréstimo que fazem. Eu sou partidário da tese da Argentina e também do Brasil que quando estavam nessa situação disseram: 'nós não pagamos'. Não pagaram e ninguém morreu por isso.
ABr: Não é a primeira vez que Portugal recorre a credores internacionais...
Soares: Não há comparação. Eu era o primeiro-ministro (1983-1985) na primeira vez em que isso ocorreu. Nós tivemos uma dificuldade, veio o Fundo Monetário Internacional, não a Troika, não fizeram nenhum espalhafato. Pegamos um dinheiro emprestado, sem grandes juros, e depois, ao fim do ano, nós pagamos os juros e acabou a história. Agora, estamos há dois anos com a política de austeridade, com a qual os mercados estão se enchendo de dinheiro às custas dos países que estão aflitos. É o que está ocorrendo na Grécia, na Irlanda e em Portugal; depois serão os espanhóis, os italianos e, mais adiante, os franceses.
ABr: Há uma razão política para isso?
Soares: Os partidos que organizaram a Comunidade Econômica Europeia [CEE], que depois se transformou em União Europeia, tinham a visão de que todos os países são iguais e havia solidariedade entre eles. Ora, os partidos que fundaram a CEE foram de dois tipos: os democrata-cristãos e os socialistas (na Inglaterra e nos países nórdicos, os partidos trabalhistas, e na Alemanha, o Partido Social Democrata). Neste momento, não há nem partidos socialistas nem democrata-cristãos porque foram destruídos [na França, o Partido Socialista é quem governa]. O que há são partidos ultrarreacionários, a favor dos mercados. Os partidos socialistas e trabalhistas estão decapitados e os partidos democratas-cristãos, ainda mais.
ABr: O senhor avalia que as conquistas sociais depois do 25 de abril de 1974 estão sob risco?
Soares: Completamente, estão quase destruídas. O Serviço Nacional de Saúde quase desapareceu, há gente que não vai aos hospitais porque não tem dinheiro para pagar [as contrapartidas cobradas conforme procedimento]. As universidades, como as de Lisboa, do Porto, de Coimbra, Aveiro e do Minho, que eram reconhecidas pelo nível internacional, hoje não têm dinheiro. Os professores são obrigados a sair e a emigrar. As universidades estão aflitas.
ABr: Na época da primeira ajuda do FMI, o senhor enfrentou dificuldades com a balança de pagamentos, com a inflação (que não tem agora) e também com o desemprego. Havia mais margem de manobra porque seus interlocutores tinham orientação política diferente?
Soares: Isso demorou um ano. Não há nenhuma comparação com esses dois anos de austeridade, que só deram dinheiro aos mercados usurários.
ABr: Retomando a Revolução dos Cravos, os dois anos após o 25 de abril foram muito instáveis?
Soares: Foi uma revolução popular, mas pacífica. Não morreu uma pessoa, não houve retaliações. Foi uma manifestação política. Alguns tipos fugiram, mas depois regressaram, não houve nenhum tipo de violência. Um dos grandes objetivos da Revolução de 25 de abril foi descolonizar. Nós não podíamos continuar com uma guerra que estava perdida em Angola, Moçambique e na Guiné. Não perdemos nada com isso, pelo contrário, ganhamos. São todos membros da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] com quem temos excelentes relações.
ABr: Mas a história diz que poderia ter ocorrido até uma guerra civil em Portugal...
Soares: É verdade. Foi quando Álvaro Cunhal, que era líder do Partido Comunista Português, pensou que podia dar um salto. Dizia: 'vamos fazer na economia uma revolução e passar de uma democracia política e social para uma democracia comunista'. O Partido Socialista se opôs. Nos opusemos e ganhamos, mas estivemos perto da guerra civil. Eles queriam fazer de Portugal 'a Cuba do Ocidente', como diziam. O [Álvaro] Cunhal desistiu na última hora. Eu estava no Porto, todos os nossos aviões [militares] foram deslocados para o Porto, porque eles prenderam o chefe da aviação. Tínhamos gasolina, porque os ingleses nos emprestaram um navio cheio para abastecimento, e estávamos dispostos a bombardear Lisboa onde os comunistas tinham força, assim como um pouco no Alentejo e em Setúbal. [Os comunistas] já não tinham [força] no Algarve [ao Sul] e a 50 quilômetros acima de Lisboa todos eram contra os comunistas. Era fácil abatê-los e nós estávamos dispostos. O presidente da República, general Costa Gomes, convenceu o Cunhal de que tínhamos mais forças militares. Na última hora, ele recuou.
ABr: A Revolução de 1974 e os episódios posteriores chamaram muito a atenção do Brasil que vivia uma ditadura. Chico Buarque compôs uma música a respeito (Tanto Mar), jornais como O Estado de S. Paulo e o Jornal do Brasil mandaram correspondentes para morar em Lisboa, políticos brasileiros vieram se exilar, como o Leonel Brizola...
Soares: Eu não conhecia [o Brizola]. Eu era primeiro-ministro e estava dormindo na minha casa, em Sintra, quando um jornalista brasileiro (casado com uma portuguesa) que esteve exilado aqui e estava em Londres me telefonou às 2h da manhã e disse: 'Tenho um problema. Houve um golpe no Uruguai e o Brizola está refugiado na Embaixada dos Estados Unidos. Os americanos disseram que só o aguentam dois dias, depois ele tem que sair. Você não poderia lhe dar um passaporte?'. Eu respondi que dava o passaporte e o que precisasse. No dia seguinte, os jornais ingleses noticiavam que eu havia concedido o passaporte. O presidente da República [António Ramalho Eanes] veio se queixar por eu não tê-lo avisado. Ele achava que eu tinha arrumado um sarilho [uma confusão] com o governo brasileiro. Eu disse: 'se o senhor acha que eu não devia ter feito, então me demita'. Enfim, ele disse que não era para tanto. O Brizola veio para cá e eu mandei um secretário recebe-lo e trazê-lo ao Palácio de São Bento. Ele chegou, como disse, não nos conhecíamos, mas demos um abraço e Brizola logo me disse: 'eu precisava de outro passaporte, além do que você mandou, porque eu quero ir aos países do Leste'. Eu respondi: 'é para já'.
ABr: Brizola queria conhecer os países comunistas...
Soares: Ele queria dois passaportes para que não se soubesse no Brasil que ele esteve nesses países. Eu lhe dei dois passaportes, um para ir aos países do Leste e outro para ele estar em Lisboa, ir à França, à Inglaterra, aos países ocidentais. Naquele primeiro encontro, era um dia de sol, eu o convidei para almoçar comigo. Levei-o a um restaurante muito chique que havia na costa, um pouco antes de Estoril. Estávamos conversando e eu pedi uma lagosta e o gajo comia pouco. Eu disse: 'eu te trouxe aqui, você está vendo o mar nesse dia esplendoroso e praticamente não come a lagosta'. Ele respondeu: 'Mário Soares, você não me conhece ainda. Eu sou gaúcho. Quando vejo o mar, eu penso: que desperdício! De lagosta eu não gosto, eu gosto é de churrasco' [risos]. Ele era um tipo muito engraçado. Depois ficamos amigos íntimos, gostava muito dele. Os homens controversos são os melhores, têm pensamento e sabem o que querem. Poderia ter sido um bom presidente da República.
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