Saturday, June 29, 2013

DAMASCO: A ENCRUZILHADA DOS PROFETAS (II)



Rui Peralta, Luanda (Ler a 1ª parte)

VI - O pretexto das armas químicas pode ainda não ser suficiente para a tomada de posição aberta dos USA, mas está a ser utilizado para justificar ajuda militar ao ELS e aos restantes bandos armados. A tentativa de criar uma zona de interdição de voo é arriscada, devido ao sistema russo S-300 SAM, russo, utilizado pela Síria pelo que a única opção é o rearmamento da oposição militar e aguardar por um melhor momento, que possa pelo menos permitir uma “intervenção humanitária”.

Para além do rearmamento do ELS, a NATO utiliza o financiamento dos estados do golfo e treina qualquer tipo de forças, inclusive da ramificação da al-Qaeda, a Ferente al-Nusra. Este é um período em que o papel preponderante cabe á propaganda, na frente externa, concernente a acções de manipulação da opinião pública internacional e á logística, na frente interna.

A Jordânia tornou-se um importante ponto logístico, para a NATO e ocupa o segundo lugar, em termos de importância, a seguir á Turquia. Recentemente foram criados campos de treino na Jordânia e foram criadas infraestruturas logísticas, na zona fronteiriça com a Síria. Quanto aos formadores, parecem ser todos de nacionalidade norte-americana, mas pertencentes ao sector privado, o que engloba os novos contractos comerciais efectuados entre o Pentágono e as companhias israelitas do sector da segurança.

Atendendo às entrelinhas dos relatórios da ONU, é bastante provável que alguns grupos estejam a ser treinados no manuseamento de armas químicas, o que comprova que os serviços secretos ocidentais estão a fabricar uma ocorrência que possa servir de ponto de viragem na situação e proporcionar a intervenção directa, com a cobertura total da comunidade internacional, neutralizando alguns aliados da Síria, como a Rússia e obter um avale da China (o que com os chineses não é difícil, atendendo ao que já aconteceu noutras ocasiões. Dinheiro e negócios obrigam e os chineses negoceiam com qualquer um, desde que a sua posição comercial saia fortalecida. As suas posições de força, são meras técnicas de venda).

Que opção química é já aplicada, é o que confirma a apreensão de 2 Kg de gás sarin, pela polícia turca, este mês, na cidade de Adana. O gás estava na posse de uma célula da Frente al-Nusra, que utiliza a Turquia como um dos seus pontos logísticos, com a cobertura dos serviços secretos turcos. A polícia apreendeu ainda diversas armas de fogo e equipamento digital. Foram identificados doze membros desta célula, mas a polícia turca já não procedeu á sua detenção, pois foram rapidamente colocados fora do país (a cobertura dos serviços secretos turcos).  
        
Este é um jogo perigoso e que pode degenerar num cenário incontrolável,

VII - O Departamento de Estado emendou o Foreign Terrorist Organization (FTO) e a Executive Order (E.O.) 13224 com as designações da al-Qaeda no Iraque (AQI) a fim de incluir os seguintes novos pseudônimos: al-Nusra Front, Jabhat al-Nusra, Jabhet al-Nusra, The Victory Front, e Al-Nusra Front for the People of the Levant e acrescenta a Frente al-Nusra como nova denominação para a Al Qaeda. O conselho do Departamento de Estado reconhece que de Novembro de 2011 a Dezembro de 2012, a al-Nusra reivindicou aproximadamente 600 ataques – dos quais 40 foram ataques suicidas - em centros de cidade principais incluindo Damasco, Alepo, Hamah, Dara, Homes, Idlib e Dayr al-Zawr. Durante estes ataques numerosos sírios inocentes foram mortos e confirma que os USA colocam a Frente Al Nusrah na lista negra do terrorismo internacional. Apesar de tudo isto a CIA, o Pentágono e a NSA, continuam a apoiar, em todos os níveis, a Frente al-Nusra. Será uma desobediência á legislação, ou apenas uma excepção, feita para confirmar a regra?

Um dos personagens capazes de responder a esta questão é o general de brigada Salem Idriss, que depois de abandonar as fileiras governamentais sírias, tornou-se o Chefe do Supremo Conselho Militar do ELS. É ele quem canaliza, utilizando o ELS como “central de compras”, as armas e equipamentos fornecidos por Washington e pelos aliados, para além dos financiamentos dos estados do golfo (que pagam os salários ao ELS) para a al-Nusra.

Salem Idriss está em ligação permanente com os comandos militares da al-Nusra e mantem uma rede em tudo idêntica ao modelo paquistanês, utilizado por Zia Ul Haq, quando era presidente do Paquistão, para financiamento e abastecimento aos grupos que combatiam os soviéticos no Afeganistão. Ainda no início deste mês, Idriss reuniu-se com o senador John McCain, na Síria, junto á fronteira turca, afirmando-se como um homem que goza da confiança de Washington. Idriss, apesar de se ocupar apenas do aparelho militar, pode vir a ser um “cavalo de corrida” futuro, para ser usado pelos norte-americanos, em alternativa aos incompetentes e patéticos líderes políticos do CNS. 

Mesmo com as decisões legislativas do departamento de Estado e com a inclusão, em Maio ultimo, da al-Nusra na lista de sanções do Conselho de Segurança da ONU, USA, França e Grã-Bretanha, três membros permanentes do conselho, continuam a ajudar a organização, desafiando o direito internacional.

VIII - Perante os reveses militares, o ELS e a al-Nusra, optaram por realizar atentados indiscriminados, A polícia síria foi vítima de um atentado, este mês, em Damasco, na praça Marjeh, que provocou 14 mortos e 31 feridos. Mas os “amigos da Síria” estão preocupados com a situação militar e com as consequências da ofensiva do governo. O governo francês, que durante este mês esteve frenético e ansioso com a questão militar síria, anunciou, através do porta-voz do Exterior Philippe Lalliot que “não se pode deixar a oposição nesta situação”.
   
Só que as coisas não são assim tão simples como os franceses desejam. Os grupos militares oposicionistas têm sido acusados de graves violações dos direitos humanos e de crimes de guerra. As execuções que estes grupos realizaram nas zonas que ocuparam, até á chegada das forças armadas sírias, são aos milhares. Os executados não eram apenas os militares, ou os agentes da segurança, os responsáveis governamentais, etc. A grande maioria das execuções foram motivadas por acusações como “apostasia” e blasfémia”. Na província oriental de Deir Ezzor, os bandos armados atacaram um bairro xiita, assassinando grande parte dos seus habitantes, que foram degolados. O mesmo se passou em Hatlah, na mesma província, onde mais de meia centena de xiitas foram degolados.
 
Estes são apenas alguns dos milhares de exemplos de crimes realizados pelos bandos armados, que nas últimas semanas decidiram proceder a ataques às aldeias xiitas, acusados de “aliados do regime”, “blasfemos e amigos dos infiéis” em represália contra o Hezbollah e as milícias xiitas sírias que apoiam o governo sírio. Em vários vídeos, podem ser vistos os bandos armados fascistas-sunitas, como a Brigada al-Sadeq al-Amine, a espalharem o terror naos bairros xiitas, casas incendiados, corpos degolados e pessoas espancadas.

São também visíveis as tensões entre o ELS e a al-Nusra, para além da crescente actividade de novos grupos como o Liwa al-Tawid, Ahrar al-Sham e o Suqoor al-Sham, todos de orientação sunita e financiados pelo Qatar, Koweit e Arábia Saudita, respectivamente. Muitos destes grupos estão melhor equipados que o ELS e recorrem a frequentes ataques suicidas em Damasco, para alem de serem os responsáveis pelas operações contra as localidades xiitas.
 
É também de destacar os confrontos entre estes grupos e as Unidades Curdas de Protecção (UCP), na região de Afrin. Apesar dos acordos entre os curdos e o ELS, os curdos favoreceram as forças armadas sírias e colocaram as suas milícias ao serviço do governo, na última ofensiva. Após os confrontos entre forças governamentais e milícias curdas em Alepo, no passado mês de Abril, o governo sírio efectuou um acordo com as milícias curdas, através da mediação do Hezbollah e das milícias xiitas sírias, estando os curdos a ter um importante papel na ofensiva “Tormenta do Norte” levada a cabo pelo governo sírio, para repor a administração governamental nas áreas ocupados pelo ELS e outros bandos armados.        

IX - No plano internacional, é relevante a recente posição egípcia. O presidente egípcio, Mohamed Mursi declarou, este mês, o corte de relações diplomáticas com a Síria, acto que Damasco considerou “irresponsável”. A decisão egípcia surge depois de uma conferência internacional islâmica de apoio á oposição síria, efectuada no Cairo. Mas não contente com a decisão de suspender as relações, o presidente Musri, apelou ainda ao Conselho de Segurança da ONU que imponha uma zona de exclusão aérea, na Síria.

Pobre Musri. Chegou tarde e a más horas. O sistema de defesa área síria, equipado pelos S-300 russos, torna esta medida ineficaz, por isso ela ainda não ter sido tomada, pelos riscos que implica. A própria Turquia, que inicialmente defendia a exclusão aérea de forma acérrima, moderou as suas posições nesta matéria. Mas Musri parece não ter lido todos os capítulos da novela.

Esta posição do governo egípcio vai agravar as suas relações com o Hezbollah, no Líbano e com o Hamas, em Gaza. Com estes últimos, as relações têm sido difíceis. O Egipto aposta numa política de asfixia de Gaza, em colaboração com Israel, o que origina um latente conflito na fronteira entre o Egipto e Gaza. Os Egípcios tentam impor uma direcção “moderada” ao Hamas, o que obviamente provoca a desconfiança desta organização em relação ao novo governo egípcio. Com esta medida sobre a Síria, Musri acaba por cavar ainda mais o fosso com o Hamas, que sempre teve na Síria um aliado. 
    
Significativa foi também a decisão do governo iraniano, tomada nas vésperas das eleições que determinaram Hassan Rohani como novo presidente da Republica Islâmica do Irão, de movimentar um contingente de 4 mil efectivos da Guarda Revolucionaria Islâmica do Irão para a região fronteiriça com o objectivo de apoiar o governo sírio. Esta posição reflecte-se também na política interna iraniana, particularmente nas tensões entre “moderados” e “radicais”. A Guarda Revolucionaria Islâmica, assim como os serviços de inteligência iranianos, são dois pontos de referência controlados pelos “radicais”. A vitória de Rohani, um “moderado” reconhecido, representa uma nova fase nas tensões internas iranianas e os “radicais” tentam assegurar os seus referenciais na política iraniana, reforçando as suas posições internas.

X - Por fim, Israel. Durante grande parte dos últimos dois anos, Israel manteve-se, aparentemente, á margem do conflito sírio, numa enigmática posição esfíngica, sendo difícil de adivinhar as suas intenções. Mas essa inacção terminou e os sionistas optaram pela interferência aberta e pela agressão. Lançou dois ataques aéreos contra posições sírias, no passado mês e fez acusações sobre o uso de armas químicas por parte de Damasco. Circularam nos meios dos serviços secretos ocidentais, suspeitas de que os israelitas estavam a actuar no interior da Síria, o que foi desmentido pelo primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, que as considerou “absurdas”. Por outro lado os sinais que vêm de Israel são contraditórios, variando entre as ameaças de “derrotar Assad” e de declarações de “não interferência nos assuntos internos sírios”. No fundo a incógnita israelita sobre a Síria, mantem-se. Deixou de ser inactiva e silenciosa passou a ser neurótica e palavrosa, mas sempre enigmática. De qualquer forma é preciso ver que quaisquer que sejam os resultados do conflito sírio, as dores de cabeça para Israel vão continuar.

Hafez al-Assad e agora, Bashir, asseguraram, durante décadas, a linha de separação entre sírios e israelitas, apos a ocupação dos Montes Golã pelos israelitas, em 1967. Esta foi sempre a fronteira mais tranquila de Israel. Em 2011 os israelitas puderam observar o que se passaria, caso o governo sírio caísse, quando mais de um milhar de palestinianos juntou-se na terra de ninguém, separadora dos dois lados dos Montes Golã, enquanto a atenção das forças sírias se concentrava na repressão dos protestos populares, que rebentaram nesse ano nas principais cidades sírias. Desses cerca de mil palestinianos, perto de uma centena atravessaram a fronteira para Israel e um deles chegou a Telavive.

Quando as forças sírias reocuparam a cidade de Quneitra e os capacetes azuis austríacos abandonaram o terreno, os bandos armados juntaram os seus grupos mercenários islâmicos perto da cidade, para a tentarem reconquistar. Centenas de mercenários, desejosos de ajustar contas com Israel ficaram concentrados ali, na fronteira, o que levou um alto responsável israelita a afirmar que “Israel prefere o diabo que já conhece que os demónios que por ali rondam.”  

Fala-se em divergências profundas entre o gabinete de Netanyahu e os militares e entre estes e a MOSSAD, devido ao conflito sírio. Os militares propõem uma acção idêntica á da primeira invasão do Líbano, na década de oitenta, ocupando uma área de segurança e entregar o assunto, do lado de lá da área de segurança, a testas de ferro. Isto não deu bons resultados no Líbano e Netanyahu já disse que não, mas a MOSSAD já encetou uma outra via e colocou-a em práctica, o que deixou Netanyahu enfurecido e os militares em polvorosa.

Segundo o New York Times, de 23 de Maio, os israelitas estão a recrutar aldeões sírios, que não são partidários do governo, nem vêm com bons olhos os mercenários islâmicos da oposição, gente de aldeias maioritariamente cristãs maronitas, drusas e alauitas não afectos ao presidente e que desconfiam das intenções do ELS, para aí lançar as bases de uma eventual zona de segurança e construir um tampão fronteiriço. Os serviços secretos sírios e o presidente Bashir já mencionaram por diversas vezes que os israelitas estão a criar a sua própria força, no interior da zona fronteiriça síria.

Mas se o futuro parece pouco prometedor para Israel, caso Bashir saia, com a sua presença e com um Estado Sírio forte e bem estruturado, as dores de cabeça não serão menores. Uma Síria forte representa um pilar de resistência á hegemonia israelita na região. Representa, também, um Irão mais fortalecido, um Hezbollah dominante, no Líbano e uma frente comum demasiado forte para os israelitas. O formidável historial guerrilheiro do Hezbollah, no Líbano, impediu a ocupação efectiva de Israel do sul do Líbano. O Hezbollah, por outro lado, é a força que limita a agressão israelita ao Irão, devido às suas movimentações junto á fronteira do norte de Israel e á facilidade com que o Hezbollah bombardeia o território israelita.

Por tudo isto Israel opta por aquela que é a sua única garantia: que o conflicto sírio permaneça por muitos anos. Esta é a única forma do regime sírio permanecer enfraquecido, mas evitando o descalabro da Síria se tornar um centro de terrorismo islâmico, mesmo nas fronteiras israelitas. Mas esta opção tem custos, daí as divergências entre Netanyahu, militares e MOSSAD. Netanyahu tem de satisfazer os compromissos internacionais e jogar com eles. OS militares não estão interessados nesses compromissos e a MOSSAD é a única que sabe contorná-los, sem cedências. 

O cenário óptimo para os israelitas é a divisão da Síria em três estados separados, ficando Bashir e os alauitas em Damasco, até ao litoral, mais dois estados islâmicos, um sunita e outro xiita, ou laico. Uma Síria dividida é uma Síria enfraquecida, logo ficando o caminho aberto para o Irão e tornar possível a neutralização do Hezbollah no Líbano.

E é no meio destes cálculos que os sionistas permanecem, enigmáticos, como a esfinge.

XI - Cem anos depois de Sykes-Picot, fala-se no redesenhar das fronteiras da Asia ocidental. Só que qualquer alteração dos limites da região levará ao redesenhar dos mapas nas regiões adjacentes, gerando um efeito de cascata. As novas fronteiras sectárias, étnicas, que querem impor, transcenderão a região em que forem demarcadas e gerarão as mais diversas guerras, implantando a instabilidade mundial, no Atlântico, no Indico e no Pacifico.

A Síria vive sob uma invasão estrangeira indirecta, realizada através de intermediários e agentes locais. Esta intervenção, mesmo sendo indirecta, espalha a instabilidade para além das fronteiras com a Síria, conforme o que acontece actualmente, com o Iraque, Afeganistão e Líbano, mas também com fortes reflexos na Turquia (estes com tendência a gravar-se devido á questão curda nesse pais, mas também devido ao período de forte tensão social e politica na sociedade turca, gerada principalmente, pela politica irresponsável do seu governo).

Ao apoiarem grupos como a Jabhat Al-Nusra, um grupo filiado na Al-Qaeda, com uma ideologia semelhante e cujos membros vivem na Síria, Iraque, Líbano e Jordânia e outros países árabes e muçulmanos, cujo principal objectivo é estabelecer um Estado islâmico de acordo com a sua interpretação do Islão, os ocidentais estão a contribuir para a fragmentação de um mosaico que é fundamental para a paz e estabilidade mundial. A ideia central do pensamento político da al-Nusra é a doutrina Wahhabi, a doutrina oficial da Arábia Saudita.

É evidente que há muito para mudar no Medio Oriente, a começar pelos estados do golfos e pelos seus regimes decrépitos, violadores dos princípios mais básicos dos Direitos Humanos. Mas a mudança tem de vir das forças da região, não pode ser imposta pelo exterior. A mudança é, também, a forma como estes países se vão reposicionar perante o mercado mundial e na política global: de cócoras, subservientes, não dando voz á soberania popular e entregando a soberania nacional aos ocidentais, acumulando a experiencia neocolonialista; ou de pé, assentes na soberania dos seus povos, orgulhosos, contribuindo em circunstâncias de igualdade para um mundo melhor e para uma humanidade mais próspera.

Fontes
New York Times, May, 23, 2013

Ler a 1ª parte

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