Eduardo Febbro - Carta Maior
Paris - As máscaras do bem caem como maquiagem escorrida pela chuva. Atrás delas aparece o horripilante rosto de uma verdade oculta no papel presente de uma larga cultura declamatória. A União Europeia semeia seus valores com a palavra, mas os nega com os fatos. A realidade não resiste muito: segundo cifras da ONU, 1.500 pessoas morrem por ano no Mediterrâneo, em sua maioria nas costas do Norte da África. Cerca de 20 mil morreram tragadas pelo mar nas últimas duas décadas, cerca de 400 nos últimos 15 dias.
Há uma semana, os ministros do Interior da União Europeia foram incapazes de oferecer tanto uma estratégia como uma resposta humana comum ao drama cotidiano das milhares de pessoas que se lançam ao mar em barcos improvisados com destino às costas de Malta ou da Itália. Inação, racismo galopante, terror à palavra “imigração”, desacordos entre os Estados que compõem a União Europeia, miséria dos países africanos de onde fogem os imigrantes em busca de um destino melhor: tudo concorre para fazer do Mediterrâneo o que o presidente de Malta, Joseph Muscat, chamou de “cemitério”.
Os ditadores da África que antes massacravam seus povos ao mesmo tempo que garantiam ao Velho Continente um controle férreo das fronteiras foram desaparecendo sob o impulso da chamada “primavera árabe” que floresceu na Tunísia em 2011 e se propagou pelo Egito, Síria, Líbia e Jordânia. Muitos lamentam esse desaparecimento. O senador de direita, Philippe Marini, presidente da Comissão de Finanças do Senado francês, escreveu no Twitter: “a afluência de refugiados africanos em Lampedusa e logo na França me faz lamentar a desaparição do regime de Muamar Kadafi”. O grande democrata prefere a segurança fronteiriça garantida por proto-ditadores. As costas líbias são, de fato, o ponto mais intrincado. Por ali passa uma grande parte dos candidatos à imigração proveniente dos países do Chifre da África, que é uma das regiões mais pobres do mundo, Trata-se de Somália, Djibouti, Eritreia e Etiópia.
Para o cúmulo dos males, do mesmo modo que ocorre com os centro-americanos que passam através do México para chegar aos Estados Unidos, muitos caem nas garras de redes de traficantes. Há uma rede mafiosa na Líbia que, a partir de Tripoli, organiza a viagem para Lampedusa em troca de aproximadamente 1.200 euros. Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, cerca de 32 mil pessoas chegaram às costas italianas e de Malta este ano. Se o ritmo se mantiver.
A afluência pode igualar ou superar inclusive a de 2012. A Frontex, agência europeia encarregada da cooperação fronteiriça, calcula que cerca de 73 mil pessoas chegaram às fronteiras da União Europeia em 2012.
“Essa situação não pode continuar assim”, disse o presidente do Conselho Italiano, Enrico Letta. No entanto, tudo segue igual, os dramas se acumulam e aqueles que se encontram em perigo em alto mar sequer podem contar plenamente com a solidariedade dos pesqueiros. Não porque lhes falte vontade, mas sim porque existe na Itália uma lei que penaliza quem socorre, ajuda ou encobre estrangeiros ilegais. Dar uma mão a um semelhante é um delito. A Europa naufraga com os náufragos africanos. A União Europeia não tem um plano, nem critérios comuns. A única coisa que tira da manga são medidas de repressão preventivas que consistem em afastar os migrantes. Cecilia Malmström, a comissária europeia encarregada da Segurança, disse semana passada que os membros da UE “devem se mostrar solidários com os migrantes e com os países que enfrentam fluxos migratórios crescentes”.
Por enquanto, nenhuma das duas coisas está acontecendo. A Europa conta com um dispositivo que só entrará em vigor no mês de dezembro. Trata-se do sistema Eurosul, uma rede cuja única utilidade consiste em compartilhar informações de satélites em tempo real sobre a situação nas fronteiras exteriores. Em resumo, uma espécie de polícia comunitária. O outro organismo dedicado à gestão da cooperação nas fronteiras exteriores da União Europeia, Frontex, viu seu orçamento cair de 118 milhões de euros para 85 milhões. Nos dias 24 e 25 de outubro, haverá uma reunião do Conselho europeu para discutir a questão. Thierry Repentin, o ministro francês de Assuntos Europeus, adiantou que Paris proporá nesta reunião “meios financeiros e técnicos” porque “não se pode deixar que homens e mulheres morram no mar sem uma resposta coletiva”.
As linhas, no entanto, não se moveram, ou seja, não haverá uma ação conjunta de envergadura. O princípio europeu segundo o qual o primeiro país onde chega o migrante deve decidir sobre sua demanda de asilo e cuidar dele não mudará, mesmo sob o peso do drama que vem sacudindo Lampedusa e Malta. Não há nenhum dirigente corajoso que coloque o tema migratório sobre a mesa de maneira realista e coletiva. O avanço que não para das forças de extrema direita paralisa os dirigentes políticos do Velho Continente. Os líderes políticos de esquerda e de direita mesclam sutilmente as ideias dos “populistas” – como são chamados os fascistas hoje na Europa – até confundir voluntariamente a imigração com a delinquência e o desemprego, e a livre circulação das pessoas com o aumento dos fluxos migratórios.
O último achado da Itália se chama “Mare Nostrum”. É o nome da operação “militar-humanitária” lançada pelo governo: quatro barcos, helicópteros e drones vão controlar os fluxos migratórios no Mediterrâneo, ou seja, devolver os migrantes a seu inferno de origem. Aqueles que arriscam suas vidas para atravessar o Mediterrâneo reforçam os fantasmas dos cidadãos europeus, obcecados com isso que o antropólogo e diretor do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, Marc Agier, chama de “o estrangeiro abstrato”: figura que concentra todos os medos e menosprezos, culpas e cargas tóxicas, o racismo comum de cada dia, a xenofobia dos “populistas” e dos próprios estados que levaram décadas elaborando uma espécie de estrangeiro responsável idealizado, culpado pelo desemprego, pela delinquência, pela perda de valores, pela crise econômica e deterioração da nação.
Suas multinacionais, seus subsídios agrícolas e protecionismos continuam, porém, explorando o planeta com a mesma indiferença com que, nas belas águas do Mediterrâneo, morrem todas as semanas dezenas de pessoas que se lançam ao mar cheias de esperança para terminar no patíbulo ou no fundo do mar. Náufragos da miséria abandonados pelos mesmos países que os colonizaram ou que, durante décadas e décadas, pactuaram e colaboraram com regimes desumanos, corruptos e assassinos de seus próprios povos.
Há uma semana, os ministros do Interior da União Europeia foram incapazes de oferecer tanto uma estratégia como uma resposta humana comum ao drama cotidiano das milhares de pessoas que se lançam ao mar em barcos improvisados com destino às costas de Malta ou da Itália. Inação, racismo galopante, terror à palavra “imigração”, desacordos entre os Estados que compõem a União Europeia, miséria dos países africanos de onde fogem os imigrantes em busca de um destino melhor: tudo concorre para fazer do Mediterrâneo o que o presidente de Malta, Joseph Muscat, chamou de “cemitério”.
Os ditadores da África que antes massacravam seus povos ao mesmo tempo que garantiam ao Velho Continente um controle férreo das fronteiras foram desaparecendo sob o impulso da chamada “primavera árabe” que floresceu na Tunísia em 2011 e se propagou pelo Egito, Síria, Líbia e Jordânia. Muitos lamentam esse desaparecimento. O senador de direita, Philippe Marini, presidente da Comissão de Finanças do Senado francês, escreveu no Twitter: “a afluência de refugiados africanos em Lampedusa e logo na França me faz lamentar a desaparição do regime de Muamar Kadafi”. O grande democrata prefere a segurança fronteiriça garantida por proto-ditadores. As costas líbias são, de fato, o ponto mais intrincado. Por ali passa uma grande parte dos candidatos à imigração proveniente dos países do Chifre da África, que é uma das regiões mais pobres do mundo, Trata-se de Somália, Djibouti, Eritreia e Etiópia.
Para o cúmulo dos males, do mesmo modo que ocorre com os centro-americanos que passam através do México para chegar aos Estados Unidos, muitos caem nas garras de redes de traficantes. Há uma rede mafiosa na Líbia que, a partir de Tripoli, organiza a viagem para Lampedusa em troca de aproximadamente 1.200 euros. Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, cerca de 32 mil pessoas chegaram às costas italianas e de Malta este ano. Se o ritmo se mantiver.
A afluência pode igualar ou superar inclusive a de 2012. A Frontex, agência europeia encarregada da cooperação fronteiriça, calcula que cerca de 73 mil pessoas chegaram às fronteiras da União Europeia em 2012.
“Essa situação não pode continuar assim”, disse o presidente do Conselho Italiano, Enrico Letta. No entanto, tudo segue igual, os dramas se acumulam e aqueles que se encontram em perigo em alto mar sequer podem contar plenamente com a solidariedade dos pesqueiros. Não porque lhes falte vontade, mas sim porque existe na Itália uma lei que penaliza quem socorre, ajuda ou encobre estrangeiros ilegais. Dar uma mão a um semelhante é um delito. A Europa naufraga com os náufragos africanos. A União Europeia não tem um plano, nem critérios comuns. A única coisa que tira da manga são medidas de repressão preventivas que consistem em afastar os migrantes. Cecilia Malmström, a comissária europeia encarregada da Segurança, disse semana passada que os membros da UE “devem se mostrar solidários com os migrantes e com os países que enfrentam fluxos migratórios crescentes”.
Por enquanto, nenhuma das duas coisas está acontecendo. A Europa conta com um dispositivo que só entrará em vigor no mês de dezembro. Trata-se do sistema Eurosul, uma rede cuja única utilidade consiste em compartilhar informações de satélites em tempo real sobre a situação nas fronteiras exteriores. Em resumo, uma espécie de polícia comunitária. O outro organismo dedicado à gestão da cooperação nas fronteiras exteriores da União Europeia, Frontex, viu seu orçamento cair de 118 milhões de euros para 85 milhões. Nos dias 24 e 25 de outubro, haverá uma reunião do Conselho europeu para discutir a questão. Thierry Repentin, o ministro francês de Assuntos Europeus, adiantou que Paris proporá nesta reunião “meios financeiros e técnicos” porque “não se pode deixar que homens e mulheres morram no mar sem uma resposta coletiva”.
As linhas, no entanto, não se moveram, ou seja, não haverá uma ação conjunta de envergadura. O princípio europeu segundo o qual o primeiro país onde chega o migrante deve decidir sobre sua demanda de asilo e cuidar dele não mudará, mesmo sob o peso do drama que vem sacudindo Lampedusa e Malta. Não há nenhum dirigente corajoso que coloque o tema migratório sobre a mesa de maneira realista e coletiva. O avanço que não para das forças de extrema direita paralisa os dirigentes políticos do Velho Continente. Os líderes políticos de esquerda e de direita mesclam sutilmente as ideias dos “populistas” – como são chamados os fascistas hoje na Europa – até confundir voluntariamente a imigração com a delinquência e o desemprego, e a livre circulação das pessoas com o aumento dos fluxos migratórios.
O último achado da Itália se chama “Mare Nostrum”. É o nome da operação “militar-humanitária” lançada pelo governo: quatro barcos, helicópteros e drones vão controlar os fluxos migratórios no Mediterrâneo, ou seja, devolver os migrantes a seu inferno de origem. Aqueles que arriscam suas vidas para atravessar o Mediterrâneo reforçam os fantasmas dos cidadãos europeus, obcecados com isso que o antropólogo e diretor do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, Marc Agier, chama de “o estrangeiro abstrato”: figura que concentra todos os medos e menosprezos, culpas e cargas tóxicas, o racismo comum de cada dia, a xenofobia dos “populistas” e dos próprios estados que levaram décadas elaborando uma espécie de estrangeiro responsável idealizado, culpado pelo desemprego, pela delinquência, pela perda de valores, pela crise econômica e deterioração da nação.
Suas multinacionais, seus subsídios agrícolas e protecionismos continuam, porém, explorando o planeta com a mesma indiferença com que, nas belas águas do Mediterrâneo, morrem todas as semanas dezenas de pessoas que se lançam ao mar cheias de esperança para terminar no patíbulo ou no fundo do mar. Náufragos da miséria abandonados pelos mesmos países que os colonizaram ou que, durante décadas e décadas, pactuaram e colaboraram com regimes desumanos, corruptos e assassinos de seus próprios povos.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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