Daniel Oliveira – Expresso, opinião
Interessa a quem tem na sua agenda o desmantelamento do Estado Social e a privatização das suas principais funções (escola pública, serviço nacional de saúde e segurança social) passar a ideia de que o que temos em Portugal e na Europa é um degenerescência, um abuso, um desvio ao que originalmente deveria ser o Estado Social. E não apenas, como foi, uma evolução e uma adaptação aos regimes democráticos e modernos de um sistema de proteção social originalmente paternalista. O Estado Social que temos é o único Estado Social realmente aceitável em democracias: de todos os cidadãos e para todos os cidadãos.
O Estado Social moderno e democrático não é assistencialista. Ou seja: não se dirige exclusivamente aos pobres. Porque, se assim fosse, ele seria económica, social e politicamente insustentável. Porque, continuando a depender das contribuições da classe média e média-alta, ela deixaria, no entanto, de beneficiar do sistema. Não beneficiando dele, essa classe média tenderia a deixar de querer contribuir. Por força do seu peso político em democracias, acabaria por o conseguir. E no dia em que isso acontecer deixará de haver dinheiro para pagar a assistência social aos mais pobres. Mas mesmo até aí chegar, os serviços públicos precisam da classe média. Só com a sua capacidade reivindicativa e poder social a Escola Pública, o Serviço Nacional de Saúde e todos os serviços do Estado podem manter uma qualidade aceitável.
Seja pela sua sustentabilidade, seja pela sua qualidade, não há Estado Social sem uma aliança entre as classes pobres e as classes médias. Foi essa aliança que forjou o Estado Social e só ela o poderá manter vivo.
Não pondo em causa a sua bondade e justiça, socorro-me de dois exemplos para se perceberem as dinâmicas que algumas políticas sociais provocaram: os realojamentos em bairros sociais e o Rendimento Social de Inserção (RSI). Em qualquer um dos casos estas políticas foram dirigidas apenas a pobres. É natural que assim tenha sido, pois só eles necessitavam deste tipo de apoio. No primeiro caso, quando o realojamento foi feito em bairros sociais, assistimos rapidamente a uma degradação da qualidade do serviço prestado. Porque o poder reivindicativo dos seus destinatários é muito baixo e porque toda a lógica desses realojamentos foi a de exclusão e isolamento. Quanto ao RSI (e isto também aconteceu com a habitação social), sabemos como não está a conseguir resistir à pressão política para lhe pôr fim. Por uma razão simples: é pago por uns e recebido por outros, sem que, salvo raras exceções, uns e outros alguma vez coincidam. E isso torna a sua defesa politicamente muito mais difícil. Porque depende apenas de bons sentimentos e não da partilha de interesses comuns entre os pobres e a classe média, que, juntos, correspondem à esmagadora maioria do país. Não há Estado Social que não sucumba à inveja e ao ressentimento social se não partir deste princípio básico: é de todos e é para todos.
Quem pretende desmantelar o Estado Social sabe isto mesmo e começa o ataque por uma ideia que, à primeira vista, parece justa: em momentos de dificuldade só se dá a quem precisa mais. Sabe que não será necessário esperar muito para que quem realmente dá, através dos seus descontos, não esteja, sobretudo em momentos de dificuldade, disponível para continuar a dar sem nada receber. E para que os serviços públicos, apenas utilizados pelos mais pobres, se degradem e se tornem em guetos semelhantes aos bairros sociais que todos conhecemos. Isto funciona com a escola pública (que o cheque ensino acabará por transformar, como acontece em alguns países com um Estado Social mais fraco, em espaços de exclusão social), com o Serviço Nacional de Saúde (que as políticas atuais já começam a tentar reservar para os mais pobres, empurrado a classe média para hospitais privados e sistemas de seguros) e com as prestações sociais (transformadas em subsídio para os indigentes). É destas últimas que quero agora falar.
Em frente às câmeras, e sem se rir, Paulo Portas perguntou, a propósito dos cortes das pensões de sobrevivência, se achávamos bem que uma pessoa que tem 4.000 euros de pensão receba uma segunda de outros 4.000 euros. Se fosse esta a questão, o debate seria irrelevante. Não é seguramente a raríssimos casos como este (nem sei se existem) que Mota Soares vai buscar 100 milhões por ano. O tecto não é de 8.000 euros, é de 600 euros, o que é um bocadinho diferente. Não é um subsídio desligado da história contributiva do benificiário, mas resultado dos descontos feitos por um casal com economia comum. E tem razões que já referi noutro texto (enormes diferenças de rendimentos entre homens e mulheres), que só pode ser alterada quando novas gerações, que entraram num mercado de trabalho mais igualitário, chegarem à idade de reforma.
Mas a ideia que esta demagogia de Portas, apenas pouco eficaz pelo exagero levado ao absurdo, pretende passar funciona: se a reforma é alta deve ser cortada. É uma questão de justiça social. E ela até passa bem na esquerda, por esta defender, em geral, maior igualdade. Acontece que, passando bem na esquerda, apenas favorece a agenda da direita mais liberal: a destruição, por fases, da sustentabilidade política e económica da segurança social e do Estado Providência.
Comecemos por uma ideia básica: as pessoas recebem reformas tendo em conta a sua história contributiva. Ou seja, tendo em conta o que descontaram. A criação de tectos máximos relativamente baixos nas reformas levaria inevitavelmente a igual plafonamento nos descontos. Única forma de deixar uma folga para a classe média se socorrer de sistemas de poupança bancária que venham a complementar a sua reforma sem os obrigar a ter uma abrupta queda de nível de vida quando se reformarem. Mesmo com um sistema redistributivo, não se pode exigir a ninguém que desconte muitíssimo mais do que vai receber. Até porque a redistribuição fundamental já é feita através de impostos progressivos (que os liberais defendem, claro, que deveriam ter uma taxa plana).
O resultado seria este: sem os maiores contribuintes, não haveria dinheiro para as pequenas pensões. E sem dinheiro e apoio alargado, a segurança social estará condenda. Como estarão condenados o Serviço Nacional de Saúde e a Escola Pública que se dirijam preferencialmente aos pobres. É então que os privados ficarão finalmente sozinhos a tratar destes apetecíveis e inesgotáveis negócios. Começando pelo mais apetecível de todos: a libertação de recursos da segurança social para os fundos de pensões. É muito dinheiro que o sector financeiro ainda pode arrecadar. Ao Estado caberá a função de manter vivos os indigentes e de, como já faz com os bancos, assaltar os contribuintes quando for preciso pagar a factura de negócios privados que corram mal.
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