Daniel Oliveira – Expresso, opinião
Em reação às acusações de Mário Soares sobre a ligação de Cavaco Silva ao BPN, o Presidente disse: "Devia saber que esclareci, em devido tempo, que nunca tive qualquer relação com o BPN ou com as suas empresas, a não ser a de depositante para aplicação de poupanças, quando era professor universitário. Esqueceu mesmo o esclarecimento que, pessoalmente, lhe foi prestado".
O que esclareceu nessa altura Cavaco Silva: "nunca exercera qualquer tipo de função no BPN ou em qualquer das suas empresas, nunca recebera qualquer remuneração do BPN ou de qualquer das suas empresas, nunca comprara ou vendera nada ao BPN ou a qualquer das suas empresas e que nunca contraira qualquer empréstimo junto do BPN". Cavaco usa o mesmo truque de Rui Machete: fala de comprar e vender coisas ao BPN, quando se sabe que as ações do BPN eram detidas, na sua totalidade, pela SLN. E que era à SLN que ele podia comprar ou vender seja o que for. E comprou. E vendeu. Está, portanto, a brincar com as palavras.
A 17 de Novembro Cavaco Silva e a filha, em cartas dirigidas a Oliveira Costa, separadas e no mesmo dia, deram ordem de venda das suas ações da SLN. Ações que foram compradas em 2001 por um euro e vendidas em 2003 por 2,4 euros. Cavaco Silva teve sorte, por elas valorizarem? Não propriamente, já que não estavam cotadas em bolsa. Foi Oliveira Costa que decidiu que seria este o lucro para o seu ex-primeiro-ministro: 147,5 mil euros. Já Patrícia, sua filha, com mais ações, lucrou 209,4 mil euros. Quem comprou as ações foi a própria SLN Valor, maior detentora da SLN.
Isto prova que Cavaco Silva teve responsabilidades no que aconteceu no banco onde se concentravam tantos ex-colegas de governo? Não. Nem sequer prova que Cavaco não estava, como afirmou várias vezes, a leste do que os seus amigos andavam a fazer. Pode mesmo ser muito distraído. Prova apenas uma coisa: que Cavaco Silva está a jogar com as palavras quando diz que nunca teve qualquer relação com o BPN ou com as suas empresas, a não ser como depositante. A frase é formalmente correta (a sua relação era com a SLN). Mas essa correção formal é irrelevante para o que está em causa.
Na campanha eleitoral isto foi assunto. Cavaco atirou para canto e a comunicação social, que nunca o incomoda muito, não aprofundou mais. Agora o tema volta, por causa de declarações de Mário Soares, e Cavaco repete a estratégia: ser suficientemente lacónico, remeter para esclarecimentos passados que nada esclarecem e esperar que passe.
Dirão que a compra e venda de ações da SLN nada diz sobre as relações de Cavaco com o gang do BPN. Não é bem assim. Não estando cotadas em bolsa, as ações da SLN só podiam ser compradas por convite. Cavaco nunca esclareceu se esse convite veio de Oliveira Costa, Dias Loureiro ou outro responsável pela sociedade. Sim, apesar de ser improvável, pode ter sido um gestor de conta do BPN a sugerir a compra das ações da SLN, sem qualquer intervenção do ex-primeiro-ministro, ex-colega e amigo de algumas das principais figuras da SLN. As dele e as da filha. Mas muito dificilmente o poderia fazer sem a sua autorização expressa. Uma coisa é certa: o valor da compra e o valor da venda destas ações (e o dinheiro que rendeu) foi decidido pelo próprio Oliveira Costa. E tudo indica que terá havido favorecimento no preço de entrada, já que estava subavaliado face aos preços que então se praticavam por ação - o aumento de capital tinha sido subscrito a €2,2, mais do dobro do que custou cada ação ao Presidente da República.
Até hoje, tirando umas frases formalmente certas mas factualmente irrelevantes, Cavaco Silva nunca esclareceu todas as questões que se levantam com o lucro inusitado que conseguiu com a compra e a venda de ações da SLN, cujos preços foram decididos pelo seu ex-secretário de Estado. Tendo em conta o que aconteceu com a SLN e o BPN e as fortes ligações políticas do Presidente da República a vários dos implicados, seria importante que o fizesse. Pode continuar a fingir que não se passa nada e continuar a confiar na suavidade da comunicação social. O que não pode é dizer que esclareceu tudo.
O assunto só continua a ser assunto porque Cavaco Silva se julga acima do escrutínio público, exigido a qualquer detentor de cargos públicos, e, por maioria de razão, ao chefe de Estado. Julga que basta dizer que "é preciso nascer duas vezes para ser mais honesto do que ele" para que mais nada tenha de ser explicado. Pouco interessa o que Cavaco Silva acha sobre a sua própria honestidade. Interessa apenas que não continue a enganar os portugueses sobre a verdadeira natureza da sua relação com a SLN/BPN (foi acionista e teve um lucro difícil de explicar) e não continue a achar que não deve dar esclarecimentos a ninguém.
As declarações de Mário Soares terão sido demasiado violentas ou menos felizes? Talvez, mas isso é o menos importante. Nem Mário Soares é o Presidente da República em exercício, nem as suas frases mais ou menos felizes custaram milhares de milhões de euros aos portugueses. Venham então, finalmente, a explicações completas de Cavaco Silva. Desta vez, sem jogos de palavras e autoelogios.
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