Wednesday, May 29, 2013

O RESGATE

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - O Chipre é, neste momento exacto em que estou a escrever, um país vítima da violência do “Resgate Interno” esse instrumento da Santa-Inquisição financeira, aplicado aos países que sofrem do pecado da gula. Todo o sistema de pagamentos foi afectado, nesse pequeno país com cerca de um milhão de habitantes, as pequenas empresas são empurradas para becos sem saída, salários e pensões deixaram-se de pagar, o poder de compra é zero e a população foi vítima de um empobrecimento brusco e sem aviso.
 
Este mecanismo inquisitório, que foi aplicado ao Banco do Chipre, o “Resgate Interno”, não fosse a tragédia humana que comporta e seria um bom tema para um thriller, baseado numa oculta instituição (misto de Maçonaria, Rosa-Cruz e Illuminatti) que se prepararia para dar um golpe de estado, em simultâneo, nas principais capitais da U.E e dos USA. A coisa seria iniciada através da confiscação dos depósitos bancários. Uma bela manhã de Primavera, os cidadãos da U.E. e dos USA quando fossem aos bancos, ficavam a saber que os seus depósitos tinham sido confiscados.
 
O argumento seria interessante, não fosse o facto de o IIF (Institute of International Finance) com sede em Washington, que representa uma certa forma consensual da instituição financeira mundial estar presente na vida, ter declarado que "a abordagem do Chipre em atingir depositantes e credores quando os bancos falham, pode tornar-se um modelo para lidar com as falências em toda a Europa." (ver http://articles.economictimes.indiantimes.com/2013-03-27/news/38070693_1_cypriot-debt-cyprus-case-bank-failures).
 
Esta figura do confisco de depósitos bancários já foi contemplada em vários países, antes do genocídio financeiro cipriota, convém esclarecer e também é bom não esquecer que os actores (para usar aqui uma linguagem “sociológica”, daqueles sociólogos que ficaram especados de deslumbre, com a teoria dos papeis sociais e dos actores sociais) responsáveis pela crise bancária no Chipre, são os mesmos que costuraram as medidas de austeridade impostas na U.E.
 
Assim sendo, os cidadãos da Zona Euro (a Eurolândia) viveriam com um cenário cipriota, no fundo do palco, para o resto da vida. Seria o modelo cipriota a prevalecer ad eternum, algures no azul imenso da bandeira europeia. E os miúdos nas escolas (só privadas, porque as publicas serão transformadas em ruinas para os animais domésticos abandonados estabelecerem os seus habitats) aprenderiam a lição cipriota.
 
Mas não se preocupem os cidadãos, Essa coisa dos depósitos não é para todos. Haverá um grupo de “depositantes atingidos” que constituirão os novíssimos “cristãos-novos” da nova fé inquisitorial do “Resgate Interno” que nunca os deixará de ter debaixo do seu omnipresente olho. Os senhores do IIF explicam melhor: "os investidores deverão ter em consideração o que se passa no Chipre (…) como um reflexo de como serão tratadas as futuras tensões". 
 
II - Assistimos e assistiremos, afinal, a um intenso processo de “limpeza financeira” em que alguns dos bancos, demasiado grandes para encolherem ou para falirem, ocupam todo o espaço bancário, eliminando do cenário as instituições financeiras mais pequenas. É a centralização e a concentração de poder, o Leviatã da Banca.
 
Os resgastes internos não são fenómenos recentes. Em 1997, na Nova Zelândia, foi considerado um “haircut” (um plano de cortes) e tanto no Reino Unido, como nos USA, existem disposições relativas ao confisco de depósitos bancários e procedimentos explícitos que transformam os depósitos de um banco falido em capital (ver http://www.fdic.gov/about/srac/2012/gsifi.pdf). Por outras palavras, o dinheiro confiscado das contas bancárias seria usado para cumprir com obrigações financeiras do banco falido e os detentores desses depósitos, seriam transformados em accionistas de uma instituição financeira falida, a título de compensação.
 
O confisco das poupanças é, assim, executado como se fosse uma compensação em termos de capital. Pura ilusão! O que existe é a aplicação de um processo de confisco de depósitos bancários, selectivamente processado, com o objectivo de cobrar a divida, enquanto a instituição morre isenta de pecados. O Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), financiado por prémios pagos pela banca privada, emitiu uma directiva, que mais não é do que um “processo de solução” (ver http://www.ey.com/Publication/vwLUAssets/Recovery_and_resolution_planning/$FILE/Recovery_and_resolution_planning.pdf /),
 
O curioso é que não existe excepção para os chamados depósitos garantidos, nos USA, aqueles depósitos inferiores a duzentos e cinquenta mil USD. Aliás esta questão dos depósitos garantidos, neste documento, surge apenas relacionado com a legislação do Reino Unido, que a directiva considera desadequada. A lógica da FDIC é simples: como os depositantes recebem uma compensação (falsa, como já vimos), não tem direito ao seguro de depósito.
 
III - Um interessante documento do governo canadiano, deste ano, intitulado " Empregos, crescimento e prosperidade a longo prazo: Plano de acção económica 2013 " (ver http://www.budget.gc.ca/2013/doc/plan/budget2013-eng.pdf), apresentado pelo ministro das Finanças Jim Flaherty, no passado mês de Março, inicialmente englobado numa proposta pré-orçamento, declara, de forma aberta e franca, o confisco de depósitos bancários, como meio de salvação para os bancos. Numa curta secção do relatório, com o sugestivo título "Quadro de Gestão de Riscos para Bancos Internos Sistemicamente Importantes" o governo canadiano propõe a implementação de um resgaste interno dos bancos que considera importantes.
 
Este documento propõe que na improvável eventualidade de um banco importante esgotar o seu capital, possa ser recapitalizado e viabilizado através da rápida conversão de determinados passivos bancários em capital regulamentar. Ora, os “determinados passivos bancários” pertencem ao dinheiro que devem aos seus clientes, ou seja aos seus depositantes, vítimas de uma instituição bancária em falência. Desta forma o governo limpa as mãos e não fornecerá qualquer financiamento para compensação dos depositantes.  
 
Os depositantes ficam obrigados a abdicar das suas poupanças e o dinheiro confiscado será utilizado para o banco satisfazer as suas obrigações contraídas para com as instituições financeiras de créditos mais “gordas”. Cria-se, assim, um mecanismo que possibilita aos grandes bancos, enquanto credores, sobreporem-se a bancos menores, acelerando o colapso destes últimos.
 
Esta iniciativa, se for aprovada na Camara dos Comuns (o que é o mais certo, por dois motivos:1. O documento faz parte do pacote orçamental; 2. O governo conservador tem uma confortável maioria parlamentar) possibilita a aplicação dos procedimentos do Resgaste Interno. Assim, o cenário será que os cinco grandes bancos do Canadá (Royal Bank, TD Canada Trust, Scotiabank, o Banco de Montreal e o CIBC, todos eles operando, também, nos USA) consolidarão a sua posição á custa dos bancos mais pequenos e das instituições financeiras regionais ou provinciais. Ou seja, assistiremos, a medio prazo, a uma maior concentração do capital bancário canadiano e ao Canadá a entrar no Leviatã financeiro.
 
A importante rede canadiana, formada por mais de trezentas cooperativas de crédito e instituições cooperativas e mutualistas, a nível provincial (sendo as principais a rede Desjardins, do Quebeque, a VANCITY e Coastal Capital Savings, na Columbia Britânica, a SERVUS, de Alberta, a Meridian, do Ontário, mais as caixas populares de Ontário, afiliadas da Desjardins) serão passiveis de serem objecto de operações de Resgaste Interno. Neste contexto, a União Central de Credito do Canadá, formada por mais de trezentas caixas populares e uniões de crédito e que com as instituições acima mencionadas, são alternativas aos cinco bancos maiores, ficarão irremediavelmente enfraquecidas e o seu futuro, provavelmente, comprometido e de curtos horizontes.
        
IV - Os quadros em que se desenvolvem os Resgates Internos são globais, consistentes com as reformas em curso na economia global e assentes em padrões internacionais. O plano proposto para o Canadá, por exemplo, é consistente com o modelo em curso nos USA e com o modelo aplicado na U.E. Isto porque a padronização é discutida e elaborada nas reuniões internacionais entre os governadores dos bancos centrais e os ministros das finanças.
 
O organismo regulador destes mecanismos traçados nos meetings internacionais entre os principais responsáveis das finanças mundiais é o Financial Stability Board (FSB), permanentemente envolvido nestas consultas multilaterais e que coordena os procedimentos de resgate interno, em ligação com as autoridades financeiras nacionais e os órgãos internacionais (FMI, Banco Mundial, BIS, etc.). A sede do FSB é em Basileia e o seu actual presidente é o governador do Banco do Canadá, Mark Carney, que durante o próximo mês, transitará para o Banco de Inglaterra, por nomeação do governo de Sua Majestade.
 
Carney, enquanto governador do Banco do Canadá, desempenhou um papel fundamental no projecto, disfarçado e encoberto, de Resgate Interno dos bancos canadianos. Antes da sua carreira no Banco do Canadá, foi funcionário da Goldman Sachs, onde desempenhou funções na implementação dos resgates externos nos USA (os resgates externos, ou bail-out, são uma injecção de liquidez aplicada num banco falido ou em processo de falência. A injecção é fornecida, geralmente, pelo governo que assume o controlo do banco e tem como objectivo a liquidação dos compromissos de curto prazo, ou seja, o governo atribui, através de pacotes destinado a salvar as instituições financeiras em situação critica, uma parte das receitas publicas, canalizando o dinheiro dos cofres públicos para o sector privado).
 
Os USA, por exemplo (para voltarmos ás actividades do nosso amigo Carney, quando era funcionário da Goldman Sachs), canalizaram, entre 2008 e 2009, cerca de mil e quarenta e cinco milhões de milhões de USD, para instituições financeiras de Wall Street. Estes resgates   esternos são, geralmente, considerados uma categoria de despesas governamentais e exigem que medidas de austeridade, sejam implementadas, ou no mínimo, medidas de contenção nas despesas publicas.
 
Em paralelo com os enormes aumentos das despesas militares, os resgates externos foram financiados através de cortes em programas sociais como o Medicare (um programa nacional de seguro social, administrado pelo governo federal desde 1965, que garante o acesso ao seguro de saúde aos norte-americanos maiores de 65 anos e pessoas mais novas com incapacidade, assim como os que sofrem de determinadas doenças), o Medicaid (programa de saúde para pessoas e famílias com rendimentos e recursos baixos) e a Segurança Social.
 
Como vimos, o resgate interno, contrariamente ao externo (financiado pelo erário publico), exige o confisco dos depósitos bancários e é implementado sem a utilização dos fundos públicos, sendo o mecanismo regulador instituído pelo banco central.
 
Ora, no início do primeiro mandato de Obama, em Janeiro de 2009, a administração norte-americana anunciou um resgate interno de 750 mil milhões de USD (que se for somada aos 700 mil milhões de USD do resgate externo, efectuado pela ultima administração Bush, ao abrigo do Troubled Assets Relief Program, o TARP, totaliza a quantia de mil e quarenta e cinco milhões de milhões de USD, financiados pelo Tesouro dos USA). Sendo as verbas da defesa, no ano fiscal de 2010, na ordem dos 739 mil milhões de USD, se adicionarmos estas verbas ao conjunto dos resgates externos aos bancos, atingiremos a belíssima quantia de dois mil, cento e oitenta e nove mil milhões de USD, devorando, prácticamente, o total das receitas federais que nesse ano fiscal de 2010 ascenderam aos dois mil trezentos e oitenta e um mil milhões de USD. Eis o trabalho no qual o nosso amigo Carney afincadamente participou. 

V - O problema é que os resgates externos já não funcionam.   Obama iniciou o segundo mandato com os cofres vazios e as medidas de austeridade chegaram a um beco fechado. Agora, o que está a dar são os resgates internos.
 
Nestas primeiras fases há que acenar com a banana ao macaco, pelo que os rendimentos médios e baixos, invariavelmente endividados, não serão o alvo principal. A apropriação dos depósitos bancários visará os rendimentos acima da média e os mais altos, que geralmente (se não forem uns estroinas incorrigiveis) costumam representar depósitos bancários bem recheados. Por aí não haverá grande problema, pois só perde quem tem. Mas o segundo alvo será constituído pelos depósitos das pequenas e médias empresas e aí já a coisa começa a mexer no bolso roto, se considerarmos o peso que as PME têm na economia mundial e as dificuldades que passam nos tempos que correm. 
 
Esta transição de resgates é consequência da deslocação, em curso, do centro financeiro e dos períodos de impasse criados pelo rumo, ainda incerto, da deslocação. Este é um período em que os mecanismos de circulação das elites funcionam de forma imprevista e aleatória, pelo que as elites que adquirem controlo financeiro, tentam, desesperadamente, corrigir esses mecanismos, eliminando os competidores, consolidando o seu controlo sobre a banca, centralizando-a e assim exercerem um controlo mais efectivo sobre a economia e o Estado (em particular instituições pilares do Estado, como as forças armadas e serviços de segurança e inteligência).
 
É evidente que esta fase crítica de transição (que gera um cenário catastrófico de crise sistémica global, mas que não passa disso mesmo, de um cenário) é de alto risco. Mesmo com a regulamentação e aplicação seletiva dos resgates internos a um número limitado de instituições financeiras falidas, o simples facto de anunciar este procedimento pode provocar uma corrida, desenfreada e generalizada, aos bancos e nesse contexto nenhum banco será seguro. Poderá, inclusive, interromper o processo de pagamentos, dificultará o pagamento de salários e o poder de compra será reduzido (e sequencialmente revisto em queda permanente). As empresas sentirão sérias dificuldades na renovação de equipamentos e as PME serão arrastadas para uma espiral de falências, muito mais rodopiante do que o panorama actual.   
 
A aplicação de um resgate financeiro na U.E. ou nos USA representa uma nova fase do processo de deslocação, mas não é um processo decisivo para a localização (o assentamento) do centro financeiro ou para o redimensionamento e reconfiguração das periferias. Estas serão beneficiadas por um período de ilusão de crescimento, necessário ao financiamento do centro, efectuado através das exportações de capitais e ao refinanciamento necessário para a sua reconfiguração. O deslocamento do centro financeiro acarreta custos, sendo esses custos absorvidos e compensados pelas periferias, que em bicos de pés anseiam por se aproximarem do centro e determinarem decisões.
 
Algumas regiões periféricas chegam ao ponto de se consideraram futuros centros, ilusão criada pelo facto de serem essas as zonas periféricas que mais custeiam os custos da deslocação, comprometendo irremediavelmente o seu futuro. Nesse aspecto o resgate interno nos USA e na U.E. vai ter repercussões imprevistas, pois as contas bancárias de cidadãos de determinadas regiões periféricas em bancos europeus e norte-americanos são elevadas, o que provavelmente representará um financiamento extra, retirando aos países periféricos poupanças de particulares que poderiam constituir importantes reservas para o seu desenvolvimento, se devidamente aplicadas.

Portanto cidadãos resgatados, não vos preocupais. Afinal vocês são o Homem Novo (em folha! Espoliados, desapossados, desempregados e ultrajados, mas sempre com alguma utilidade). E o Homem Novo está sempre presente nos velhos amanhãs que assobiam (com a vantagem de, a breve trecho, sermos todos cipriotas).
 
Fontes
Chossudovsky, Michel O confisco de poupanças bancárias para "salvar os bancos" http://www.controversia.com.br
 

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