Saturday, September 14, 2013

Portugal: AS LINHAS DO DR. PORTAS

 


Nuno Saraiva – Diário de Notícias, opinião
 
Que a palavra do dr. Portas é meramente casuística e instrumental, já todos sabemos. Pelo menos desde que em meados do verão, após a diatribe da sua demissão "irrevogável", se viu promovido a vice-primeiro-ministro, dando todo um novo sentido e significado ao conceito de irredutibilidade.
 
Ao aprovar esta semana, em nome da convergência de sistemas, o corte de 10% nas pensões da Caixa Geral de Aposentações, o Conselho de Ministros encarregou-se de nos mostrar, mais uma vez, a volatilidade dos compromissos e das fronteiras inultrapassáveis do líder do CDS.
 
Foi em maio, a propósito da chamada "TSU dos pensionistas", que o dr. Portas, qual Quixote dos reformados, se empertigou para, solenemente, declarar que não aceitava que os mais velhos e desprotegidos, "aqueles que não têm voz", fossem, de novo, fustigados pela austeridade virtuosa que os moinhos de vento, encarnados pelo primeiro-ministro, queriam impor.
 
Afirmava então o irrevogável dr. Portas: "Num país em que parte da pobreza está nos mais velhos, numa sociedade em que inúmeros avós têm de ajudar os filhos que estão no desemprego e cuidar dos netos, num sistema social que tem de respeitar regras de confiança, o primeiro-ministro sabe, e creio ter compreendido, que esta é a fronteira que não posso deixar passar. Porque não quero que em Portugal se verifique uma espécie de cisma grisalho que afetaria mais de três milhões de pensionistas, uns da Segurança Social outros da CGA. Quero, queremos todos no Governo, uma sociedade que não descarte os mais velhos. Quero, queremos todos no Governo, um ajustamento que não prejudique, sobretudo, os que não têm voz."
 
Passados quatro meses, verificamos que afinal existem pelo menos 346 mil pensionistas - o total de reformas atingidas por mais este golpe - que são "descartáveis". É certo que há uma diferença quantitativa substancial - definitivamente, 346 mil não são três milhões -, o que até pode servir ao vice-primeiro-ministro para o habitual discurso de autoelogio de que o pacote até "podia ter sido mais sombrio" não fosse a intervenção do CDS. Mas o que resulta claro das medidas aprovadas - veremos o que diz o Tribunal Constitucional - é que, para o Governo em geral e para o dr. Portas em particular, há pensionistas de primeira e de segunda. E que os princípios de confiança que devem regular o sistema são tão descartáveis quanto estes pensionistas ou as palavras do líder CDS.
 
Do que estamos a tratar não é de gente privilegiada, com pensões bastardas ou abusivas porque não descontou para elas. Do que estamos a falar é de pessoas que trabalharam a vida inteira, descontando aquilo que o Estado lhes exigiu, na expectativa mais do que legítima de, chegada a idade da reforma, auferir a remuneração que lhes é devida.
 
E é também uma questão moral. Invocar, como tantas vezes se faz, a solidariedade entre gerações para justificar o "assalto" às reformas de quem ganha acima dessa fortuna que são 600 euros mensais é, como já aqui escrevi, criminoso. Como dizia, em maio, o dr. Portas, por ventura "num ato de dissimulação", são aos milhares os avós que ajudam os filhos desempregados a cuidar dos netos. E isto também é solidariedade entre gerações. É, aliás, normal que os mais novos e ativos sejam chamados a contribuir para o financiamento do sistema de segurança social que paga as pensões daqueles que entretanto se reformaram, após cumprirem a sua carreira contributiva, mesmo sabendo que, é mais que certo, não terão acesso ao mesmo nível de pensões daqueles que hoje as recebem.
 
Dito isto, é absolutamente claro que para o dr. Portas não existem linhas inultrapassáveis nem compromissos irrevogáveis. De agora em diante, o CDS, que reclamava, e bem, os louros de ter contribuído para o descongelamento das pensões mínimas, sociais e rurais, será reconhecido por ter sido cúmplice da inadmissível rutura total do contrato social até agora existente.
 
De há dois anos e uns trocos a esta parte, somos confrontados com o discurso da inevitabilidade e com a punição por termos vivido acima das nossas possibilidades. Sabemos, por mais que agora se tente negar, que o objetivo sempre foi o empobrecimento de trabalhadores e reformados. E desconfiamos que, desde logo por falta de equidade, este será mais um diploma a esbarrar no Tribunal Constitucional. Afinal, o pretexto para mais uma vez agradar à troika e alargar o corte a todos os pensionistas, como exigido desde o início pelo FMI, pelo BCE e pela Comissão Europeia.
 
Uma imoralidade, enfim, ou o "cisma grisalho" que, com lágrimas de crocodilo, se fingiu querer travar.
 
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