Wednesday, September 4, 2013

Colômbia, Damasco e Alepo: DA PROPAGANDA TÓXICA À GUERRA QUÍMICA

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Existe um país onde em 20 anos foram registadas mais de 250 mil desaparecimentos, dos quais cerca de 35 mil entre 2005 e 2010. Nesse país, numa só fossa comum, situada perto de um aquartelamento militar foram encontrados cerca de dois mil corpos. É um país onde os opositores políticos são assassinados, os guerrilheiros atirados vivos para fornos crematórios, os sindicalistas são eliminados aos milhares, as comunidades rurais são bombardeadas, os jovens são executados nos bosques e vestidos como guerrilheiros, para fazer crer que foram mortos em escaramuças com as “forças da ordem” e os activistas pelos direitos humanos eliminados nas ruas.
 
Não, não é da Síria que estou a falar. É da Colômbia. Mas já alguma vez leram, ouviram, ou viram imagens e noticias sobre estes factos, nos meios de comunicação oficiais ou privados? Claro que não! O Estado colombiano é um menino mimado de Washington, Paris e Telavive, ou seja é um “regime amigo”. Já a Síria…é um “patinho feio”.
 
Quando os meios de propaganda do Ocidente falam da Síria referem constantemente os massacres perpetrados pelas milícias de apoiantes do regime, a Shabiha, Mas quantos já ouviram falar da AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), dos Bacrim ou da Força Omega? A propaganda ocidental apresenta os mercenários fascistoides do ESL (Exército Sírio Livre) e da Al-Nusra, como “combatentes da liberdade”, “revolucionários”, o banditismo armado e a ingerência externa são vistos como uma “insurreição popular” e alguns discursos mais elaborados apresentam os acontecimentos na Síria como uma “Revolução”.          
 
Mas já alguém leu, ouviu ou viu, nos órgãos propagandísticos do Ocidente falar em Revolução e em insurreição popular na Colômbia? Já alguém viu imagens da guerrilha popular, que envolve milhares de camponeses pobres, de indígenas, de operários e intelectuais, de jovens trabalhadores e de estudantes universitários? Não, nunca viram…Mas vêm diariamente nos noticiários, principalmente naqueles que são passados nos horários nobres, uma produção esforçada que apresenta imagens fugazes e confusas, onde é notório o esforço dos esteticistas da TF1, RTL ou France 24, por exemplo, a trabalharem a imagem dos bandos armados e a transformá-los em zapatistas floridos e perfumados.
 
Enquanto a insurreição popular na Colômbia é designada por “narco-terrorismo”, a ingerência externa e os bandos armados mercenários que actua na Síria são vistos como uma “revolução de todo um povo”, esquecendo-se dos milhões de cidadãos sírios que expressam a sua hostilidade perante os acontecimentos e que se organizam em torno do governo para combater a ingerência externa.
 
Alguém viu alguma vez Obama preocupado com o povo colombiano? Alguém alguma vez viu as catatuas que esvoaçam pelo governo francês referir os crimes cometidos pelo Estado colombiano, ou François Hollande ter mencionado, em qualquer ocasião, os atentados contra os direitos humanos cometidos na Colômbia? Alguém considera possível o Conselho de Segurança da ONU preparar uma intervenção humanitária na Colômbia, ou a NATO preparar uma operação de apoio logístico aos guerrilheiros colombianos? Nada!
 
Mas, ao contrário, defender e apoiar os assassinos que cortam mãos, dedos e orelhas, que despedaçam os corpos dos que morrem durante as torturas, que massacram impunemente comunidades inteiras, que queimam aldeias e sequestram cidadãos, isso sim, é uma atitude “humanista”. A NATO apoiar a Al-Nusra e o ESL é um acto de “solidariedade”, a CIA ajudar assassinos e traficantes na Síria, é um acto necessário de “envolvimento do mundo livre”, tão livre que engloba as monarquias déspotas e obscurantistas do Golfo.
 
Estamos pois, perante uma galeria vasta de homicidas, vigaristas e gentalha da pior espécie (escarros morais), que não hesitam em trucidar e recorrer ao genocídios dos povos para fazer prevalecer os seus interesses. Falar em solução politica na Colômbia, implica que esta gentalha rasca e sem berço que predomina na Politica Internacional ergam-se em coro e afirmem, histéricos, em uníssono: “Não se negoceia com terroristas!”. Se falarmos em solução politica para a Síria, vemos o mesmo coro a vociferar, em uníssono: “Não se negoceia com ditadores!”.  
 
No meio desta verborreia estão os povos. Sem voz, sem sonhos e sem rosto ficam os sírios, constantemente referidos na comunicação social internacional e que vêm admirados as lágrimas de crocodilos que sobre eles são vertidas e os colombianos, ignorados e sem forma de fazer ouvir a sua indignação nos meios de comunicação social. Será condicionamento ideológico ou indignação selectiva?
 
II - Na Síria os confrontos prosseguem, a um ritmo incerto. Perante alguma quebra de intensidade, verificada após as vitorias alcançadas pelo governo, apoiado pelo Hezbollah e pelas milícias populares, que foram enquadradas nas forças armadas sírias, verifica-se, nas últimas semanas um crescendo de intensidade e um aumento da amplitude do conflito. A propaganda joga agora um papel fundamental, uma vez demonstrada a incapacidade politica e militar dos opositores.    
 
Em Damasco vive-se uma “calma tensa” - atendendo às informações menos contagiadas pela propaganda de ambos os lados - onde o conflito é de baixa intensidade. Nos bairros periféricos e nos subúrbios existem confrontos e escaramuças, mas nas áreas centrais da cidade o apertado cordão de segurança impede a penetração dos bandos do ESL e da Al-Nusra. Yubar é um bairro periférico a noroeste de Damasco, onde diariamente se produzem confrontos entre os bandos armados e as forças armadas sírias. Duraya, um subúrbio operário, outrora florescente de actividade fabril, é hoje um local desolado, em que as fábricas foram destruídas pelos confrontos armados e os trabalhadores lançados no desemprego. Grande parte das residências, deste subúrbio, foram destruídas e muitos abandonaram o local, enquanto os que teimam em permanecer procuram abrigo nas mesquitas.    
 
Ao contrário de Alepo, uma cidade que apos um ano de batalha viu os seus bairros periféricos completamente destruídos, Damasco não tem cicatrizes tão evidentes da guerra. Contrariamente a Raqqa, uma cidade do Este do país, caída nas mãos da Al-Nusra, pilhada e destroçada e tornada inabitada, Damasco é um bastião tolerante e dinâmico do Estado Sírio. A economia é em grande medida impulsionada pelos fundos colocados á disposição pelo Irão, que já injectou na Síria mais de 4 mil milhões de USD, desde o início do conflito.
 
Mas as sombras da guerra fazem-se sentir. Em quase todos os subúrbios desenrolaram-se importantes batalhas, desde as zonas periféricas mais distantes de Damasco, como Duma e Harasta, até às mais próximas, como Barseh e Yubar. Do Verão ao Outono de 2012, o ESL e a Al.Nusra lançaram uma ofensiva sobre Damasco, que muitos consideraram, triunfalmente, como ofensiva final, ocupando muitos destes bairros de Damasco. Quando foram escorraçados deixaram algumas bolsas nos bairros que outrora ocuparam, como acontece em Yubar, embora, por exemplo Ghuta, uma área a Este de Damasco permaneça ocupada pelos bandos armados. Para além destas bolsas clandestinas, da sua presença resta a memória dos combates, representada pelas ruinas dos edifícios.
 
A transformação mais notória de Damasco é verificada na sua população. Antes do conflito comportava cerca de seis milhões de habitantes, a maioria com um elevado nível académico e de qualificada formação profissional. É certo que Damasco não rivalizava com o Cairo, na vida intelectual, nem tinha a sofisticação de Beirute, mas era uma cidade de ambiência social equilibrada, de grande convívio com um movimento constante. Hoje um grande número destes profissionais de elevada qualificação emigrou para o Cairo, Beirute, Teerão, Riade ou outras cidades do Golfo, enquanto pobres e indigentes, refugiados vindos das áreas periféricas, tomaram o seu lugar na cidade velha e no distrito de Midan, a sul da capital.  
 
Nas lojas vende-se verniz para as unhas, batom, pó de rouge e outros artigos de beleza e cuidados femininos, Muitos dos actuais habitantes de Damasco sobrevivem graças ao apoio das redes informais de auxílio criadas por xiitas, sunitas, cristãos, drusos e alauitas. O governo criou em 2012 o Ministério para a Reconciliação Nacional, identidade que tem como função prestar auxílio aos sírios necessitados, mas a burocracia, que sempre acompanhou solenemente a governação do BAAS, impede o seu funcionamento normal. Nos guichés espalhados pela cidade, os cidadãos, em filas enormes e infindáveis, aguardam ansiosos, que funcionários indolentes, sempre zelosos com os procedimentos, mas indiferentes á noção de servidores públicos, os atendam. Na sua maioria os cidadãos mais necessitados vêm rechaçados os seus pedidos de auxílio, restando-lhes recorrer às redes informais.
 
Alguns dos activistas das redes de apoio social são oposicionistas assumidos ao actual governo e alguns deles são de vez em quando feitos prisioneiros, acusados de actividades ilícitas, como aconteceu em Julho a Yussef Abdelke, pintor, Esteve vários anos preso, durante vigência de Hafez al-Assad, o pai do actual presidente sendo um dos muitos opositores que, apesar de estar vigiado pelas forças de segurança, organiza redes de auxilio e recusa-se a apoiar os bandos armados e a ingerência externa.
 
Mas nem todos os opositores pensam assim e muitos intelectuais não querem sujeitar-se às prisões arbitrárias a que são submetidos pelos burocratas do BAAS, que de forma pouco inteligente e á margem da lei constitucional, procedem a vagas de perseguições sem qualquer mandato judicial. Um dos mais prestigiados escritores de Damasco Yassin Haij-Saleh e um dos advogados mais famosos desta cidade, Rasan Seituneh, refugiaram-se nos subúrbios, encontrando-se em finais de Julho em Ghuta, um dos subúrbios de Damasco que o governo ainda não controla. Recentemente foram entrevistados pelo The Guardian e afirmaram que preferem a insegurança vivida nestas áreas, á constante perseguição a que são submetidos pelas autoridades.  
 
Os bairros de Damasco são zonas mistas em termos culturais e religiosos, apesar de alguns bairros, como Bab Tuma sejam de maioria cristã e Mezze predominantemente alauita. Os sírios sempre se orgulharam do convívio entre as diferentes comunidades, embora a guerra tenha produzido alterações neste comportamento. As zonas de maioria alauita foram atacados pelos grupos extremistas sunitas e em alguns casos alauitas e xiitas foram vítimas de genocídio, enquanto nas áreas de predominância sunita as milícias alauitas e xiitas procederam a acções de extermínio.
 
Em algumas áreas da cidade estão em voga os sequestros de familiares de reconhecidos elementos da burguesia síria apoiante do governo e os bandos criminosos actuam muitas vezes de forma impune, devido á ausência policial. A polícia concentra-se nas áreas de acesso e de saída da cidade, sendo o patrulhamento de algumas áreas da cidade efectuadas a horas certas pelas forças armadas, o que permite às gangues actuarem de forma aberta.
 
Apesar de todas estas alterações provocadas pelo peso da guerra, em Damasco a vida continua e a cidade reage aos ventos que sopram do Ocidente…
 
III - Alepo, uma cidade do norte da Síria, é um cenário de guerra. Ocupada no ano passado pelos bandos armados, a cidade é palco de combates diários, tendo grande parte da cidade sido retomada pelo governo durante o mês de Julho deste ano, após constantes bombardeamentos. Esta foi a cidade em que os bandos armados, apoiados pelos USA e pela NATO, ensaiaram a novela das armas químicas, perante o avanço das forças governamentais e das milícias do Hezbollah, tendo os ensaios da novela sido agilizados, quando as milícias curdas se aliaram ao governo. Em Junho deste ano já eram visíveis em Alepo umas tendas de campanha, completamente desocupadas, que segundo os líderes do ESL e da Al-Nusra eram tendas preparadas para as “vítimas das armas químicas”.    
 
Para além destas tendas os “combatentes da liberdade” mostravam aos repórteres ocidentais o seu stock de prevenção, composto por 10 mil doses de antropina e…16 máscaras de gás. Alepo é habitada por dois milhões de pessoas, pelo que as 10 mil dozes de antropina devem ser apenas para uso exclusivo dos mercenários e as 16 máscaras de gás para uso exclusivo dos “valorosos comandantes da Revolução”. Seja como for o cenário estava montado e os “rebeldes” mostravam, orgulhosos, ao Ocidente que estavam preparados para a guerra química. 
 
Nesta região o presidente sírio é usualmente conhecido por “burro”, “cão” ou “pato” dependendo da queixa que os cidadãos de Alepo tiverem contra o governo de Bashar e a sua burocracia crónica (o maior inimigo do governo sírio não são os bandos armados, mas sim a sua própria burocracia e a corja de funcionários bajuladores que se implantaram nas instituições e no aparelho de Estado). Esta é uma cidade cujos habitantes estão habituados a serem lançados á sua sorte, ao contrário de Damasco. Acontecimentos como os ocorridos a 26 de Julho deste ano, no bairro Bab Nayrab, onde a queda de um míssil provocou 35 mortes, entre as quais 19 crianças, são vistos com alguma indiferença, por ambos os lados e servem apenas para encher as estatísticas.
 
Nesse sentido Alepo é uma cidade mártir. O seu martírio começa longe, com as estruturas administrativas centralizadas e com os governadores nomeados pelo poder central, cada um deles mais incompetente e corrupto do que o anterior. Depois veio o martírio da ocupação da cidade pelos bandos armados, constituídos por mercenários estrangeiros de origem sunita, que trataram de proceder a operações de “limpeza e purificação”, em nome de Alá. Xiitas, curdos, cristãos e alauitas foram sendo eliminados em Alepo, as suas residências incendiadas e os seus bens confiscados. Também os inúmeros sunitas que se opunham a estes massacres foram vítimas de interrogatórios e muitos foram executados, acusados de “hereges” e de “falsos fiéis”.
 
Alepo é uma cidade em ruinas que foi transformada num imenso cenário. Aqui a máquina de propaganda ocidental tentou abafar a derrota dos mercenários e o avanço das forças armadas sírias e foi nesta cidade em escombros que a máquina de propaganda ocidental ensaiou os primeiros passos da novela das armas químicas. Quanto aos orgulhosos habitantes de Alepo, nem sequer foram utilizados como figurantes…
 
IV - Os recentes acontecimentos ocorridos em Ghuta (subúrbio de Damasco) colocam o governo sírio sob forte pressão internacional. As imagens dos cadáveres passam diariamente nas televisões ocidentais e as evidências do uso de armas químicas é indiscutível. O que é discutível e passível de interrogações é a forma como os factos são descritos e quem, de facto, utilizou as armas químicas.
 
Ghuta é diariamente bombardeada, tanto pela aviação como pela artilharia das forças governamentais. É uma área que não tem rede eléctrica á mais de 10 meses e a qualquer momento cai em controlo do governo, o que representará mais uma derrota militar da oposição. Por que razão o governo sírio autorizaria o uso de armas químicas numa área que está prestes a cair sob seu controlo? Mas já a oposição tem motivos suficientes para montar uma operação que permita acusar o governo sírio, provocar a intervenção internacional e anular a vantagem militar e operacional das forças armadas sírias.
 
O maior receio de Bashar é a intervenção internacional. Por que razão o governo sírio - num momento em que a sua vantagem militar torna-se efectiva, que controla 13 das 14 províncias do país, que encontra-se numa posição vantajosa - iria utilizar armas químicas, sabendo que isso pode provocar uma intervenção internacional? Torna-se, assim, fundamental saber quem utilizou as armas químicas, o que parece ser difícil, atendendo á pressão que é efectuada e às condicionantes em que estão submersos os inspectores da ONU.   A única evidencia, a única certeza, é que morreram centenas de pessoas - homens, mulheres, crianças, idosos - envenenados por gases químicos. Se este massacre foi cometido pelo governo sírio, pela oposição, ou por mais alguém, é algo que a ONU deve apurar e divulgar (o que parece não estar a acontecer com os relatórios dos inspectores, por pressão da França e dos USA).
 
A forma precipitada como os impetuosos responsáveis franceses e turcos lidaram com o assunto, pretendendo uma intervenção imediata é suspeita. A forma como os USA agiram, após os acontecimentos, com as declarações do vice-presidente Biden e do secretário Kerry em aparente contradição com um misto de apatia e ponderação demonstrada por Obama é, no mínimo reveladora das lutas de bastidores que atravessam a política externa norte-americana em relação á questão síria. A UE mantém uma aparente contenção, apimentada com a verborreia indignada, própria dos que tomam o digestivo após a refeição. Russos e Chineses lideram os que apelam ao bom senso e neste sentido saliente-se o papel desempenhado pela Venezuela, Bolívia e Equador.
 
Quanto aos sírios, nestes palcos geoestratégicos são os que menos contam. Não é a Síria apenas um meio para atingir um fim? E quando não se olham a meios para chegar mais depressa ao objectivo…
 
Fontes
Pierre Filiu, Jean  Le Nouveau Moyen-Orient. Les peuples à l’heure de la révolution syrienne, Ed.Fayard, 2013
Le Monde, 30/05/2012; 14/09/2012
The Guardian, 21/07/2013
The New York Times, 25/08/2013
 

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